
Em 1994, na efervescência do manguebeat, João Fênix, que ensaiou uma carreira no Recife como J. Phênix, foi tentar a vida no Rio. Não conhecia quase ninguém na cidade e, para sobreviver, trabalhou como caixa num restaurante do Fashion Mall. Deu sorte e conseguiu fazer um show no Rio Jazz Club: "Desse show pintou a oportunidade de fazer uma audição para o musical Quatro Carreirinhas, de Wolf Maya. Acabei, de certa forma, protagonizando o musical. Meu solo principal era com Cálice. Foi ali que fiquei conhecido no meio, naquela época", conta João Fênix.
Passados 22 anos, Cálice (Chico Buarque/Gilberto Gil) é uma das faixas do seu quinto álbum De Volta ao Começo (Biscoito Fino). Morando entre o Rio e Washington DC, onde vive com seu companheiro (que trabalha na OEA), Fênix passou quatro anos sem disco novo e fez poucos shows. Certamente pela sua ausência do País, o disco anterior, autoral, não recebeu destaque na imprensa. No novo trabalho, ele volta a ser apenas intérprete. Passou a bateia pelo rico filão da música brasileira, selecionando canções que abrangem décadas, dos anos 30 ao começo dos 2000. Do Noel Rosa de Último Desejo (1938) ao Zeca Baleiro de Minha Casa (2000).
Desde o início da era dos festivais, os autores deixaram de ser fornecedores de material inédito e se tornaram, eles mesmos, seus principais intérpretes. Fênix confessa que sentiu nas pessoas a cobrança de que também se dedicasse à composição: "A cada CD, eu me tornava um pouco mais compositor. Esse processo culminou com meu CD A Foto Onde Eu Quero Estar (2011). De volta ao Começo é exatamente uma ruptura deste processo e uma volta a esta minha primeira expressão musical. Além de representar também uma busca da minha essência como ser humano", explica.
Foi seu projeto mais maturado. Ele só entrou em campo quando viu que escalou um time que se não era imbatível, tampouco seria fácil de ser derrotado. Dois produtores de competência comprovada: Jaime Alem (que durante anos foi diretor musical de Maria Bethânia) e Jr. Tostoi (da banda de Lenine e um dos principais nomes da nova geração). Juntemse a eles alguns dos melhores instrumentistas do país: Alberto Continentino (contrabaixo), Marcos Suzano e Marcelo Costa (percussão), Nicolas Krassik (rabeca, em uma faixa), Deco Trombone (também em uma faixa), Gabriel Ventura (guitarra, em duas faixas).
Fênix, no disco anterior, também foi produzido por Alem e Tostoi: "Na verdade trabalhar com dois músicos de vertentes tão distintas como eles é um aprendizado. Fico fazendo uma ponte entre eles o tempo todo, do processo de criação à execução. E, na finalização, no mix, busquei dosar o melhor de nós três em prol do resultado musical. Na verdade, nenhuma música ficou com ninguém, e aí é que esta ponte foi tão importante. Tostoi gravou minha voz guia com o violão do Jaime, e depois acrescentou o Suzano e o Alberto. O Tosta fez as edições do Suzano. O Jaime colocou violões definitivos, instrumentos complementares e coro. Gravou voz comigo. Todo mundo ficou com tudo na verdade. As faixas voz e violão foram entendidas assim desde quando gravamos as vozes guias. Sem esquecer do mérito do meu amigo e superengenheiro Fabiano França".
Assim como Ney Matogrosso, o esquecido Edson Cordeiro (que mora na Alemanha desde 2007) ou o novato Liniker, João Fênix é cantor masculino de timbre feminino, tessitura de contralto. O que pode ajudar ou atrapalhar a carreira, dependendo de como este dom seja usado: "A voz pode ter me atrapalhado ali na adolescência. Antes mesmo de ser cantor. Mas quando comecei a cantar encarei como um dom, algo bom. Arroubos vocais nunca fizeram minha praia. Não sou assim. Gosto de dinâmicas e o menos para mim quase sempre pode ser mais".
A inclusão de Cálice dá a impressão a desavisados de falta de açodamento no repertório. A música não apenas é manjada, como recebeu uma interpretação definitiva de Milton Nascimento e Chico Buarque. Porém, além do valor afetivo que tem para Fênix, ele a utilizou também como um libelo político, pela participação do deputado Jean Wyllis (PSOL): "Jean é meu amigo de alguns anos. Ele dirigiu o que seria originalmente o DVD do show Ciranda do Mundo ao Vivo, mas que só lancei o CD. É meu irmão. Temos muita admiração mútua. Na verdade, a inserção do coro das estudantes em São Paulo cantando a música foi ideia dele. E como foi no mesmo período em que ele teve mais um daqueles debates com um político homofóbico no plenário, resolvi inserir trecho de suas palavras", esclarece o cantor, acentuando que já explicitava temas do universo homoafetivo no quarto disco.
Fênix foi mais assíduo nos palcos da cidade na década passada, chegou a fazer show no Teatro do Shopping Guararapes, com participações de Naná Vasconcelos e Ney Matogrosso. Afastouse de Pernambuco, mas o Recife continua muito presente na sua música: "Mais musicalmente que vocalmente, devo ser sincero. Comecei a cantar no Recife em pleno rebuliço causado pela reverberação do movimento mangue na imprensa local, e logo depois nacional. Me sinto muito influenciado pela musicalidade única de minha terra. Estou sempre aberto a aprender. Pupillo foi meu primeiro baterista. Até hoje quando encontramos me chama de Juninho. O Otto também. Sou muito fã desses caras".
Ele não sabe quando voltará aos palcos pernambucanos. Em julho apresentase, com o show do álbum De Volta ao Começo, na primeira edição da Mimo, em Portugal. Uma dessas peças que o destino e o tempo costumavam pregar. Lu Araújo, da Mimo, foi a primeira produtora de Fênix e ajudou a abrir os caminhos quando chegou ao há Rio 22 anos.