Patrimônio Vivo

Mocinha da Passira empoderou-se desde a década de 50

Aso 16 anos saiu de casa para viver livre e apenas das sua poesia

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 24/07/2016 às 9:00
Foto: Jc Imagem;Heudes Regis
Aso 16 anos saiu de casa para viver livre e apenas das sua poesia - FOTO: Foto: Jc Imagem;Heudes Regis
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Cinco décadas antes do anglicismo "empoderamento" se tornar uma das palavras preferidas das feministas brasileiras, uma pernambucana, de Passira, no Agreste pernambucano, empoderou­se na prática. Descobriu, ainda criança, que possuía o dom de improvisar versos e, na adolescência, caiu na estrada. Ela se chama Maria Alexandrina da Silva, 70 anos, e é conhecida como Mocinha de Passira. É também o único nome da cantoria de viola agraciado como Patrimônio Vivo de Pernambuco.

 O que reveste a escolha de relevo ainda maior. Não apenas porque este gênero de poesia oral é ignorado pela política cultural do Estado, como também por se tratar de uma arte historicamente dominada pelos homens. "Ser escolhida para Patrimônio Vivo pra mim acho que chegou na hora. A minha vida toda só foi isso. Nunca trabalhei em nada de carteira assinada, foram mais de cinquenta anos só fazendo versos e levando o nome de Pernambuco pra todo os cantos do Brasil", comenta a repentista.

 Contam-­se nos dedos as mulheres que se sobressaíram na cantoria de viola, Mocinha de Passira é uma das poucas que ganhou o respeito dos marmanjos e que não trocou a viola pelas prendas domésticas. De versos que fluem fácil, ela é de falar pouco e vai direto ao assunto: "Por cima de pedra e toco, eles não queriam, mas eu meti os peitos e aí foi embora", é assim que explica como logrou entrar e permanecer no repente, no qual começou com 13 anos incompletos:

 "Eles me aceitaram porque eu fazia repente, dando cipoada de todo tamanho. Com 14 anos, no Alto Bartolomeu de Gusmão, em Cavaleiro, criei uma estrofe que entrou numa antologia. Eu cantava com Manoel Belarmino. Na sala estavam a esposa dele e duas meninas de quatro pra cinco anos. Por causa das minhas pernas e outras coisas, ele cantou: "Mocinha canta mostrando o grosso das pernas/desafiando os playboys das cabeleiras modernas". Eu respondi: "Pra que tu não governas esta língua de serpente/respeita mais tua esposa, e cada filha inocente/toma vergonha na cara/ pai de família indecente".

 Aos 16 anos ele saiu de casa, para se dedicar à cantoria. Pinto de Monteiro (Severino Lourenço da Silva Pinto Monteiro. 1895/1990), considerado um dos maiores repentistas de todos os tempos, conheceu Mocinha de Passira numa cantoria, em Tamanduá, distrito de Gloria do Goitá (PE), e a convidou para morar na casa dele: "Pai deixou. Mas minha mãe, não. O documento que eu tinha era um registro, peguei uma bolsa frasqueira, botei umas coisas, duas calcinhas, e fugi. Fui para o Recife, comprar a passagem para Caruaru. Pinto, para mim, foi um rei, um pai, meu mestre". Ele conviveu com alguns dos mestres da cantoria de viola.

CASAMENTO, NÃO É PAPO PRA ELA

 Mocinha teve muitos companheiros, mas marido mesmo, um só, em 1965: o forrozeiro Duda de Passira (Julio Nunes Pereira, 1949 ­2013). Um casamento curto como uma chuvada, na comparação de Mocinha. Ele queria que ela cantasse forró e o acompanhasse quando ele ia tocar: "Casei no dia 3 de dezembro, no dia 5 de maio eu já tinha quebrado tudo. O negócio dele era me levar pros forrós a pulso, pra ficar me tocaiando. Ninguém tocaia ninguém. Não deu certo. Um dia amanheci virada, apanhei um cacete que havia lá. A primeira coisa que quebrei foi a sanfona dele. Está manifestada, gritou ele, e foi buscar uns catimbozeiros. Eu avisei que o primeiro que entrasse quebrava no cacete, e expliquei: o problema é que eu vou embora e ele não quer deixar. Quando arrumo minhas coisas e olho para trás está ele se enforcando. Corri, cortei a corda, e ele caiu em cima do fogão. Fui embora", disse numa entrevista a este jornalista cinco anos atrás.

 Já compararam Mocinha de Passira a uma Janis Joplin do Sertão. Atualizando para os dias atuais, seria uma Tati Quebra ­Barraco do repente, mas Mocinha de Passira é incomparável, vive de poesia improvisada desde o final dos anos dos anos 1950, mas ainda sofre discriminação. Participa de muitas cantorias, mas se queixa de que esquecem muito o seu nome quando montam elenco para os festivais no Nordeste. Seu nome circula pelo País, é cultuada em São Paulo, com passagens por talk shows de grande audiência, e pelas páginas da edição nacional da revista Rolling Stone.

 Mesmo que entrevistada por pessoas que sabem pouco sobre ela, e muito menos sobre o mundo do repente. São exposições que rendem convites, que Mocinha, livre e desimpedida, aceita sem titubear: "Sempre fui decidida. O cara em São Paulo me chamou pra Mato Grosso do Sul, só fiz arrumar as malas e viajei aquilo tudo, em Aquidauana, em Corumbá, até a fronteira com a Bolívia. Vou a Brasília, ao Rio de Janeiro. Tem uns empresários que diz um preço a gente e cobra outro. Teve um que deixei em Americana, em São Paulo. Ele me falava um valor, e recebia o dele, por debaixo dos panos", reclama

 

Os versos de Mocinha de Passira estão espalhados em antologias, na memória de apologistas, pesquisadores, em 12 CDs e dois LPs. Estreou em disco, há 40 anos, ao lado de três grandes mestres: Diniz Vitorino e dos irmãos Dimas e Otacílio Batista, num LP da Rozenblit. Mas Mocinha lembra que, já no início, pelejou com grandes cantadores: "Quando fiz a primeira cantoria lá casa do meu pai, na quarta-­feira já chegou Zé Paulino de Vitória pra cantar comigo. No sábado, fui pra Feira Nova e cantei com Severino Moreira. Eu fui combatendo o machismo, cantando com todo tipo de cantador fui cantando feito um passarinho que voa do ninho e não volta mais".

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