Sem Freyre, ou melhor, sem o movimento regionalista liderado pelo sociólogo Gilberto Freyre, o Nordeste não existiria. Pelo menos, não o Nordeste como se viria a entender. Até a virada do século 19 para o 20, a região era não mais que uma porção geograficamente nebulosa. “O termo Nordeste é usado inicialmente para designar a área de atuação da Inspetoria Federal de Obras contra a Seca, criada em 1919. Neste discurso institucional, o Nordeste surge como a parte do Norte sujeita às estiagens e, por essa razão, merecedora de especial atenção do poder público. O Nordeste é, em grande medida, filho das secas; produto imagético discursivo de toda uma série de imagens e textos, produzidos a respeito deste fenômeno, desde a grande seca de 1877”, lembra o historiador Durval Muniz de Albuquerque, no seu ensaio A Invenção do Nordeste (2012). Com o progressivo deslocamento do poder econômico e político para o Sudeste, Freyre, portanto, surge como ideólogo de um grupo de intelectuais de elite preocupados em construir não apenas uma imagética, mas uma tradição para o Nordeste.
Antes de lançar o Manifesto Regionalista, Freyre começa a se valer de uma série de artigos publicados em jornais em que se pronuncia como o grande demarcador ideológico da região. Escreve uma série de artigos sobre o que chama, intencionalmente, de pensamento tradicionalista e regionalista. Artigos sobre os mais diversos temas – inclusive em defesa de uma pintura, de uma sociabilidade e de uma culinária próprias da região. Em fevereiro de 1926, o Congresso Regionalista do Nordeste uniria intelectuais de toda a região em defesa do “espírito” nordestino ameaçado pelo Rio e São Paulo.
Os jornais do Sul e Sudeste respondem, também em artigos, ao “separatismo” nordestino. “Uma iniciativa político-intelectual importante foi o lançamento, em Recife, de um manifesto redigido por Gilberto Freyre com o propósito de mostrar que o Nordeste havia contribuído para a nação com muito mais do que apenas o açúcar”, lembra o sociólogo Carlos Alberto Dória (em a Invenção da Culinária Brasileira, 2009).
No Manifesto Regionalista de 1926, Freyre reivindica uma melhor participação da região no jogo do poder nacional: “A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundi-lo com separatismo ou bairrismo. Com anti-internacionalismo. Ele é tão contrário a qualquer separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa à superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – esta sim separatista – para substituí-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser – os caracterizados no brasileiro por sua forma regional de expressão – que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de inter-relação que, ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-rio-grandense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense, em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano”.
DEMARCAÇÃO
No Manifesto Regionalista, o sociólogo demarca o Nordeste como matriz sócio-cultural de todo o País: “Não há região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante mais de um século que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores”. Assim, uma série de símbolos de leitura mais imediata são articulados para a demarcação ideológica do que seria, essencialmente, o Nordeste.
Referência dos estudos entre antropologia e poder, o antropólogo Eric Wolf lembra, numa assertiva comum em sua obra crítica, como a configuração de identidades está necessariamente ligada à negociação ideológica de conteúdos. Hegemonias simbólicas supõem o descarte ou menosprezo de símbolos que não tiveram força suficiente ou foram reprimidos antes de receber grande adesão social. “O medo de não ter espaços nessa nova ordem, de perder a memória individual e coletiva, de ver seu mundo se esvair, é que leva à ênfase na tradição, na construção deste Nordeste”, lembra Muniz de Albuquerque.
Como um dos fundadores da imagética do Nordeste no século 20, Freyre se equilibra entre o atraso e a fecundidade fundadora de uma civilização sob a égide do açúcar, com grande tendência ao elogio dessa civilização inaugural. A demarcação teórico-política do Nordeste exige, inclusive, a eleição de um passado: “Para legitimar o recorte Nordeste, o primeiro trabalho feito pelo movimento cultural iniciado como Congresso Regionalista de 1926, denominado de regionalista e tradicionalista, foi o de instituir uma origem para a região (...)”, continua Muniz de Albuquerque.
Nesse momento dos anos 1930, o Brasil inteiro, aliás, começa se forjar uma mentalidade patrimonialista. “A cultura brasileira é vista nessa perspectiva como o conjunto de valores espirituais e materiais acumulados através do tempo. Ela é um patrimônio, e por isso deve ser preservada”, lembra o sociólogo e antropólogo Renato Ortiz, no já clássico Identidade Brasileira e Cultura Popular (1994). Do bairro de Apipucos para o mundo, Gilberto Freyre, goste-se menos ou mais de sua sociologia, é, afinal, um dos criadores do Nordeste. O mais notório deles.