“ A bebida boa e de graça fulminou os punks. Todos beberam tanto que desmaiaram pelo são, enjoados de caviar. Punks derretidos de porre em poltronas de couro lembravam uma pintura de Dali. Punks abraçados a garçons, reclamando da dureza do sistema, conversando com o espelho do banheiro, rindo das luzes que não paravam de piscar ...”. A cena aconteceu no Gallery, boate da alta burguesia paulistana, dirigida por José Victor Oliva, nos Jardins, em 1982. São Paulo descobria os punks, que já infestavam a periferia e se reuniam no Centro da capital paulista há pelo menos cinco anos. Só no Brasil seria possível se ver punks vomitando caviar.
A história do punk de São Paulo é contada no livro Meninos em Fúria - e o som que mudou a música para sempre (Alfaguara, 220 páginas, R$ 31,90), assinado por Marcelo Rubens Paiva, com Clemente Tadeu Nascimento. o parceiro de Rubens Paiva nesta empreitada é também o personagem principal da narrativa, que se confunde com a história do punk rock em São Paulo. Clemente é o vocalista do grupo Os Inocentes (e agora também do Plebe Rude), formado por integrantes da Restos do Nada e Condutores de Cadáveres.
O livro é uma biografia em que o biografado intervem no texto do biógrafo, levando a história a ser contada na primeira e terceira pessoas. “No Brasil, um garoto negro, filho de uma empregada com um baiano, que se criou na Zona Norte de São Paulo, zona de gangues, decidiu partir para o confronto e liderar a causa punk. Um anarquista que acreditava que os punks formariam a vanguarda revolucionária que destruiria o capitalismo na guerra internacional, a voz do subúrbio, da revolução permanente: Clemente Tadeu Nascimento ... É sobre ele este livro”, escreve Rubens Paiva.
Mas o livro é também sobre o biógrafo, de suas suas memórias pessoais e do Brasil de início dos 80, vivendo sob uma ditadura que se esgarçava mas não queria deixar o poder. A abertura do livro é um texto empolgante. Marcelo Rubens Paiva, o branquelo burguês, que frequentava os shows punk, nos quais inevitavelmente a pancadaria irrompia, em tretas entre gangues. Um mergulho num lago rendeu-lhe uma fratura na espinha, dois anos numa cama, e o restante da vida numa cadeiras de rodas. Rendeu-lhe também a inspiração para um dos livros mais vendidos da década, Feliz Ano Velho.
A narrativa é bem conduzida, e condensa em poucas páginas a trajetória de Clemente, o desenvolvimento do punk rock, que mais adiante se entrelaça com o Brock, salpicada de episódios de violência das gangues, da polícia, e o racha da ditadura militar. A ala radical resistindo a entregar o poder aos civis, praticando atos terroristas com bombas em jornais, entidades como OAB. O punk foi a trilha de uma das fases mais conturbadas do país. Livres da censura prévia, os jornais revelavam a cada semana um episódio de corrupção nos altos escalões do governo.
Meninos em Fúria poderia ser adotado pelos colégios como um paradidático. Para os que advogam a volta da ditadura, são relembrado no livro vários episódios exemplares dos escândalos financeiros que pipocaram na época, como o da Delfin, maior empresa privada de crédito imobiliário do país. Que quitou com terrenosavaliados em CR$ 9 balaços, a dívida de CR$ 60 bilhões que tinha com o governo federal.
PUNK E POLÍTICA
Assim como aconteceu como o movimento Black Rio, o andar de cima demorou muito tempo para se dar conta do que acontecia no térreo. Tomou conhecimento através de uma série de matérias, escrita por Luis Fernando Emediato, no Estadão (que virou livro). Um das matérias tinha por título: Drogas, álcool e um revolver na mão, ou: Usam suástica mas não sabem quem foi Hitler. Os punks se indignaram com as matérias. Clemente, dos poucos entre eles, que fez faculdade (embora tenha abandonado o curso no primeiro) foi encarregado de escrever uma carta à redação. A carta foi publicada.
Ele escreveria pouco tempo depois, na revista Gallery Around, editada por Antonio Bivar, o primeiro manifesto punk de São Paulo. Que alcançou grande repercussão, sobretudo pelo parágrafo final: “Nós estamos aqui para revolucionar a Música Popular Brasileira, para dizer a verdade sem disfarces (e não tornar bela a imunda realidade); para pinta de negro a asa branca, atrasar o trem das onze, pisar sobre as flores de Geraldo Vandré e fazer da Amélia uma mulher qualquer”. O Punk paulistano era abertamente de confronto, verbal e físico.
Clemente e os Inocentes acabaram numa multinacional, a Warner Music, de onde saíram sem sem sucesso e sem grana. Foram-se ideologias, agigantou-se a tecnologia, Clemente continua na estrada. No entanto, o punk da periferia hoje só é cantado na música homônima de Gilberto Gil. Daí a importância deste livro ao contar o caso como o caso foi.