ESPETÁCULO

Ariano Suassuna celebrado no teatro pelos 90 anos de seu nascimento

Suassuna - O Auto do Reino do Sol entrou em cartaz no Rio de Janeiro e circulará pelo Brasil

Adriana Victor
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Adriana Victor
Publicado em 15/07/2017 às 8:30
Marcelo Rodolfo/Divulgação
Suassuna - O Auto do Reino do Sol entrou em cartaz no Rio de Janeiro e circulará pelo Brasil - FOTO: Marcelo Rodolfo/Divulgação
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O Sertão, a Paraíba e Pernambuco, as Pedras do Reino – são todos lugares que marcam e identificam Ariano Suassuna. Mas se há que se eleger um lugar para representá-lo, geograficamente e alegoricamente, nenhum supera o circo: “O Circo é uma das imagens mais completas da estranha representação da vida”, escreveu certa vez. Definia-se como “um palhaço frustrado”. E é justamente para um picadeiro circense que se volta o foco da encenação de Suassuna – O Auto do Reino do Sol, espetáculo criado para celebrar os 90 anos de nascimento do escritor, Exatos três anos depois de sua partida, a peça tributo, que está em cartaz no Rio de Janeiro até 20 de agosto, vem encantando plateias.

Capitaneado por um trio de amigos paraibanos, o novo Auto tem texto criado por Bráulio Tavares, encenação de Luiz Carlos Vasconcelos e músicas compostas pelo também cantor Chico César (junto com Beto Lemos e Alfredo Del Penho). A idealização e produção do espetáculo são da Sarau, agência que também cuidou com a devida dedicação das celebrações dos 80 anos de Ariano, sob a batuta de Andrea Alves. No palco, a Cia. Barca dos Corações Partidos, trupe quem tem seduzido aqueles que cruzam o seu caminho Brasil afora.

Apesar da identificação e da admiração de todos pela obra e pelas ideias do escritor, a encenação, intencionalmente, não é a biografia do celebrado. “Não é uma peça ‘sobre’ Ariano. É uma peça minha, onde recebi como desafio usar algo da visão de Ariano”, define Bráulio Tavares, escritor e conhecedor do universo sobre o qual se debruçou. “Li o Auto da Compadecida aos 10 anos. Ler o Romance d’A Pedra d Reino, aos 21, mudou a minha vida. E Ariano sabia disso”, revela.
“O que aumenta a nossa responsabilidade é a grande admiração por ele e o fato de não estar vivo pra poder dizer ‘gostei disso’, ‘não gostei daquilo’. Ariano deixou uma obra vasta, além de muitos seguidores”, afirma Chico César. “Essa obra é um grande desafio, essa herança. E optamos por criar para homenagear este imenso criador.”

PALHAÇOS

O Auto do Reino do Sol narra a história do circo de Mademoiselle Sultana (Adrén Alves), “astróloga, bailarina, clarividente, consultora tântrica e micro-empresária”, que entranha-se pelo Sertão, levando a tiracolo sua trupe de músicos e artistas. Amor, disputa entre famílias rivais, personagens de Ariano aqui e ali ajudam a compor o enredo.

Para ver de perto o que inspirava a criação do escritor, a equipe foi a Taperoá, Sertão da Paraíba, ano passado. “Ficamos três dias na Fazenda Carnaúba e o grupo fez uma apresentação informal na praça, tocando, improvisando versos de maracatu rural para uma roda de gente”, conta Bráulio Tavares. “Visitamos a Pedra da Jaúna, onde Dantas Suassuna (filho de Ariano) está supervisionando umas inscrições planejadas por Ariano. Eu já conhecia a cidade, mas para o pessoal do grupo era muita novidade.”
Pontuando o espetáculo, dois palhaços, Escaramuça (Eduardo Rios) e Cabantõe (Renato Luciano), dupla que tem parentesco artístico com João Grilo e Chicó, personagens centro do Auto da Compadecida. “Acho que Ariano ia ficar feliz com os dois”, avalia Bráulio. “Sempre defendi que via em Ariano a plenitude das técnicas populares que circundam o palhaço”, reforça Luiz Carlos Vasconcelos. “Quando contava suas histórias, fazendo rir com aquela intensidade, via nele um palhaço. E não precisava de pintura. A crença e, principalmente, a sinceridade com que contava suas histórias, além da antecipação do efeito risível, gerava o cômico”, completa, lembrando que outro vínculo que tem com Ariano é a defesa vigorosa da cultura popular brasileira.

“A forma como tentamos construir os palhaços e o circo dessa cena se sobressai, eu acho”, comenta. “É um circo encantado, das memórias, das antigas pantomimas, da ingenuidade levada à quinta essência. Da beleza não só do riso farto e pleno, mas comovente, singelo, puro – como a arte mais antiga dos palhaços.”

MÚSICA

A Barca dos Corações Partidos traz três musicais em seu repertório: Gonzagão – A Lenda, com texto e direção do pernambucano João Falcão, Ópera do Malandro, de Chico Buarque, também dirigido João Falcão, e Auê, uma premiada criação coletiva. O Auto dedicado a Ariano também tem na música forte parceira. “Não são canções que rendem homenagem a Ariano Suassuna, não foram feitas pra isso. O espetáculo é sobre um grupo circense que pretende homenagear Ariano e se emaranha em seu universo”, explica Chico César. “Ao me juntar com Beto Lemos e Alfredo Del Penho, buscamos sonoridades e ritmos que dialogam com esse ambiente que dá origem à obra dele e também com suas influências: a música dos índios, dos negros, ibérica, entre outras.”

Questionado sobre se já chegou a imaginar de qual, entre as músicas, Ariano mais gostaria, Chico reponde: “Nunca me perguntei isso. Mas me emociona imaginar-me assistindo o espetáculo ao lado dele quando o casal protagonista canta a Canção do Soturno, pois fala no sítio Rancho do Povo, que fica em Catolé do Rocha, cidade paraibana onde nasci e na qual vive uma grande parte da família do pai dele, João Suassuna, e da qual ele gostava muito”.

Suassuna – O Auto do Reino do Sol deve circular pelo Brasil, passando pelo Recife. Mas ainda não há datas definidas. No Rio, com o teatro sempre cheio, a turma criadora comemora. “O espetáculo tem ido muito bem. As pessoas elogiam o carisma dos atores, a bela encenação, as canções, a alternância de ‘climas’ – humor, épico, lírico”, reflete Bráulio. De qual momento do espetáculo ele mais gostou? E Ariano, de qual gostaria? “Eu sou suspeito pra gostar. Acho que Ariano aplaudiria a garra e a entrega de todo o grupo. Iria curtir bastante os palhaços. E alguns versos.” Do alto, por certo, há um palhaço feliz com tanta graça.

ESTER SUASSUNA SIMÕES ESCREVE SOBRE ESPETÁCULO QUE CELEBRA O AVÔ

Sentimos e dizemos sempre, com muito amor, que Ariano vive. Desde o seu encantamento, há quase três anos, estes têm sido exercícios constantes: o de agradecer pelo tempo que tivemos de convivência física com ele e o de prestar atenção, sempre que possível, aos indícios de sua permanência. Vários desses indícios nos saltam aos olhos este ano, através das homenagens que celebram os 90 anos de nascimento do escritor, em 16 de junho de 2017. Entre eles, a peça “Suassuna – o Auto do Reino do Sol”, que estreou na semana do seu aniversário, no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro.

Com texto de Bráulio Tavares e direção de Luiz Carlos Vasconcelos, a peça é encenada pela Companhia Barca dos Corações Partidos. Como nos outros espetáculos da Cia. (“Gonzagão – A Lenda”; “Ópera do Malandro”; "Auê"), a música é elemento essencial neste trabalho cuja direção musical é assinada por Chico César, Alfredo Del Penho e Beto Lemos.

O projeto não pretende ser uma biografia de Suassuna, mas sim uma grande celebração de seu universo artístico. Conta a história de um grupo de circo que se apresenta pelo sertão enquanto procura o caminho para a cidade de Taperoá, onde fará um espetáculo em homenagem ao “poeta Suassuna”. No caminho, a trupe passa por terras marcadas por um conflito antigo entre duas famílias inimigas: os Moraes e os Fortunato. No seio da guerra, nasce um amor proibido entre o neto de uma Fortunato e a sobrinha de um Moraes. Ariano dizia que se via como que dividido em dois hemisférios complementares forjados por duas figuras fundamentais: o Rei e o Palhaço. Em “Suassuna – o Auto do Reino do Sol”, estão bem representadas essas duas faces do poeta. Do lado Rei, os figurinos são escuros, trata-se dos conflitos sertanejos, das disputas por terras e poder que movem personagens como Antônio Moraes (Ricca Barros) e Eufrásia Fortunato (Adrén Alves); mas também se celebra a resistência do povo sertanejo, sua bravura e talento na força de um arraial que ameaça os poderosos, o Soturno.

No núcleo do circo-teatro, com figurinos que vibram em cor, está reverenciado o hemisfério do Palhaço, aquele que Suassuna dizia dar uma cambalhota a cada vez que a seriedade e uma certa angústia tentavam dominá-lo. Liderado por Sultana (Adrén Alves), uma “astróloga, bailarina, clarividente, consultora tântrica e micro-empresária”, o grupo do circo tem dois palhaços,  Escaramuça (Eduardo Rios) e Cabantõe (Renato Luciano). Os dois conquistam rapidamente o público, que se rende às gargalhadas ao acompanhar uma dinâmica que é um pouco de João Grilo e Chicó, sendo também de Dom Quixote e Sancho Pança, e tantos outros.

São esses mesmos dois atores que, despidos dos palhaços, em uma cena de sonho, emocionam ao lembrar que Suassuna é também – e talvez acima de qualquer coisa – um grande devoto da Compadecida. Unindo os dois hemisférios, está a história de amor de Lucas Fortunato (Alfredo Del Penho) e Iracema Moraes (Rebeca Jamir). Ele, um valente vaqueiro repentista, que tem horror às brigas que envolvem sua família, e ela uma moça da cidade que se deixa, aos poucos, transformar pelo amor e pela arte. “Você se incomoda de nos conhecermos assim, sem ninguém para nos apresentar?”, diz Lucas a Iracema, exatamente como disse Ariano à esposa Zélia, em agosto de 1947, quando se conheceram. É, portanto, de amor eterno, desafiador da morte de que se fala aqui.

O texto de Bráulio Tavares é todo assim, permeado por citações de Suassuna, o que permite ao público várias camadas de recepção. Talvez um espectador atento identifique, logo no início da peça, um trecho do Romance d’A Pedra do Reino, do folheto “A Visagem da Moça Caetana”, dito por três figuras de retirantes, que têm algo de bruxas, de parcas. Outros certamente reconhecerão fragmentos do Auto da Compadecida, da Farsa da Boa Preguiça ­– talvez no personagem Chico de Rosa (Beto Lemos), que é grande defensor do ócio criador –, de Uma Mulher Vestida de Sol, de Fernando e Isaura... ou mesmo de alguma história que Suassuna contava em suas aulas-espetáculo e entrevistas.

Para os leitores de Ariano, a peça se ilumina constantemente do sentimento de reconhecimento e a emoção vai se construindo também nos detalhes das referências. Para aqueles que talvez não sejam tão familiarizados com seus textos, ela é um convite ao encanto e à descoberta de um autor que, mesmo que muito admirado, talvez seja ainda pouco lido. Pessoalmente, posso dizer que quando assisti à peça experimentei uma sensação forte de ausência-presença. Por muitas vezes, lamentei que Ariano não estivesse ao nosso lado na plateia – teria se emocionado aqui e ali? Teria rido com os palhaços, com o Dom Quixote? Acho que sim. Que falta que ele faz, esse nosso oráculo!

Mas aí me ocorria que, na verdade, ele não precisaria estar sentado do lado de cá porque estava o tempo inteiro no palco. Saltava na minha frente a cada vez que eu reconhecia uma das muitas citações que surgiam, mais ou menos ocultas, entrelaçadas no lindo texto e em tantas músicas maravilhosas. Não precisou que o espetáculo fosse uma biografia ou a montagem de uma de suas peças – certamente ele estava ali... no circo, no Sertão dos arraiais, no riso arrancado do público. Ariano vive em momentos assim!  Que o tema da Estrada inspire esta Barca a seguir em frente, emocionando quem cruza seu caminho e nos ajudando a lembrar que aquele falso profeta, insone, extraviado, tinha razão quando duvidou da própria morte!

ESTER

Ester Suassuna Simões é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Literatura da UFRJ e neta de Ariano

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