Música

João do Pife e Egberto Gismonti reencontram-se depois de 20 anos

Os dois músicos celebram com shows em Caruaru e no Recife

JOSÉ TELES
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JOSÉ TELES
Publicado em 25/01/2018 às 7:00
Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem
Os dois músicos celebram com shows em Caruaru e no Recife - FOTO: Foto: Alexandre Gondim/JC Imagem
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“Esta história foi muito bonita, muito boa, um dos momentos mais achegados no meu trabalho, na minha história do pife, com aquele grande músico. Nunca tocamos juntos, mas tivemos uns momentos juntos; para mim foi de uma grandeza grande. Ele também ficou com aquele sonho na cabeça, de fazer um trabalho com João do Pife”, quem diz isto é João Alfredo Marques dos Santos, ou João do Pife, sobre o reencontro dele com o fluminense Egberto Gismonti, que estava prestes a acontecer terça-feira, na sua oficina de instrumentos, na rua Cardeal Arcoverde, 133, no bairro do Salgado, em Caruaru.

 Egberto vinha do Rio especialmente para rever o amigo. Um reencontro que será celebrado com o concerto O Avião Tá de Parabéns. Serão duas apresentações: amanhã, no teatro do Sesc Caruaru, e sábado, no Teatro de Santa isabel, dentro da programação do Janeiro de Grandes Espetáculos. O curioso título do show o produtor Geraldinho Magalhães pinçou de uma das muitas histórias de João do Pife em suas viagens ao redor do mundo.

 Esta, especificamente, aconteceu, quando voltava de um festival no Canadá, onde ele e Egberto Gismonti se conheceram. Maravilhado com a refeição servida a bordo, João esperou uma comissária passar perto dele para demonstrar seu apreço pelo repasto. Depois de receber os efusivos elogios, a aeromoça, disse que os parabéns não deveriam ir apenas para ela e o pifeiro, prontamente: “Então o avião tá de parabéns”.

 Egberto Gismonti, confessadamente, não gosta de sair de casa, a não ser para compromissos que realmente lhe interessem, independente de cachê. “Quando soube quem ele iria encontrar, aceitou de cara”, conta o produtor.

 João do Pife tem passaportes carimbados desde 1994, quando viajou com a Banda de Pífanos Dois Irmãos para tocar em Portugal. Já dividiu palco com grandes nomes do jazz e da MPB. No entanto, para ele, Egberto Gismonti não é apenas mais um músico de, como diz, outro gênero. É uma pessoa a quem admira e extravasa a alegria do reencontro, filosofando sobre a singularidade de cada um, tecendo uma analogia entre a parceria e um casamento.

 “Eu fico imaginando o que isso tem a ver com pife, com a cultura que não é a nossa. Recebi um convite dos Rappa pra participar de um trabalho no Recife. A cultura do pife misturando com eles, é que nem, imagino assim, uma moça e um rapaz. O rapaz é de uma família, a moça é de outra família. Começam namorando, não sabem como vai dar certo, então casam e aquele casamento pode dar muito bem, como se fossem uma família só. Eu comparo o pife como se fosse um casamento. Ele de um lado, um gênero de outro, os dois querendo se unir pra formar uma família só”, reflete.

 HISTÓRIAS

 A pequena oficina está tomada de gente, a maioria da equipe de Nilton Pereira (TV Viva), que está dirigindo um documentário com Egberto Gismonti e João do Pife como personagens. Alguém avisa que a van que traz Egberto chegou. João troca a camiseta que vestia por uma camisa estampada. Vai ao encontro do amigo, se abraçam no meio da rua. A vizinhança não parece muito interessada. Os dois vão para a oficina. Na mesa de trabalho estão vários pífanos, de tamanhos e tonalidades diversas. João do Pife e Marcos Antônio, outro pifeiro da Banda de Pífanos Dois irmãos, tocam uma música, depois Egberto Gismonti experimenta alguns pífanos e se senta. Faz-se silêncio e João do Pife, numa prosódia própria, conta sua história, mas com roteiro que muda rapidamente de orientação. Fala como falam personagens sertanejos de Ariano Suassuna ou de Guimarães Rosa:

“Quando vim lá do pé da serra, de Cruz das Almas, onde tocava novena com meu pai, tinha um sonho de tornar mais conhecido o terno de zabumba dele. Mas lá naquelas brenhas, tocando novena, não dava não. Aí quis vir pruma cidade grande. Minha mãe perguntava pra onde eu ia se não tinha casa pra morar. Pensei em Caruaru, vim pro bairro do Salgado, comecei fazendo pife, e fui pra feira, vender pife pra viver. Tinha que escolher um canto. Feira de fruta não dava, feira de carne não dava.

 Então pensei que teria que ficar perto da história do mestre Vitalino, Com uma mochila de pife nas costas, fui até a neta de Vitalino, disse que queria arrumar um cantinho pra vender meus pifes. Ela botou um banquinho, forrou e comecei a vender. Uns dois ou três meses depois, chegou a TV Viva de Olinda. Queriam fazer um trabalho comigo, pediram que eu andasse um pouquinho pela feira pra ser filmado, me deram um dinheirinho. Eu disse pra eles: me deu dinheiro, eu ando a feira todinha”.

 João do Pife orgulha-se de não terem lhe faltado as três refeições, de ter educado os oito filhos e comprado uma casa própria trabalhando com música, seja tocando, seja fabricando instrumentos:

 “Agora você me pergunta, se eu tive apoio de alguma fundação, se o governo me ajudou. Não. Foi a minha força de vontade e aquele sonho de tornar o terno de zabumba do mestre Alfredo, assim que se chamava no começo, conhecida mundo afora”. Egberto Gismonti, sentado ao lado da mesa, brinca: “Não é fácil sentar na frente de 450 mil pífanos destes e sair tocando, ainda mais que você só me dá os mais ou menos. Ensaio pro show? Quero que vocês toquem o que sabem e vou interferindo; temos que achar o que coincida com as tonalidades. Você tem uma música que seu pai fez que é uma beleza. Tem um caboclinho muito bonito, e você está trazendo seu pai na história.

 Você me lembra meu tio Edgar, o meu avô, que era um compositor de valsa maravilhoso”. Desenha um resumo sucinto de suas origens. O pai foi imigrante libanês, a mãe filha de imigrantes italianos. Por parte de mãe, todos na família eram músicos. O tio Edgard com uma trajetória que se assemelha à de João do Pife, mas que, ao mesmo tempo, é o seu inverso. Nunca quis sair de sua cidade, a pequena Carmo, interior do estado do Rio (cidade natal de Egberto), e garantiu à família que viveria unicamente de música sem sair de lá. Viveu. Tornou-se uma espécie de tocador oficial de Carmo, garantido em todos eventos e efemérides. “Quando fez 17, 18 anos, ia na casa das cidades, batia nas portas, a pessoa atendia, ele dizia que veio trazer um presente e tocava uma música. Uma coisa que me marcou. Ele me dizia que fazia uma música por dia. Virou o músico profissional de Carmo, uma história linda. Uma beleza uma pessoa que é teimosa. Chegou a um ponto em que ele juntou dinheiro sem dizer a ninguém até que um dia comprou uma casa e deu a tia Judite”.

 João do Pife apartou: “Pra ter ver agora sentado aqui, eu ralei, queimando as mãos no fogo fazendo pífano. O pessoal pensa que é fácil a vida de João do Pife. Quantas vezes fiquei na feira, sem vender um pífano. Depois, com sede, queria tomar uma coisinha, e pedia fiado”.

A MÚSICA

 Respira-se música naquela sala, decorada com fotos de parentes de João, um tarol e uma zabumba com o nome do Mestre Vitalino. Pelas paredes, as ferramentas com que são produzidos os pífanos, um tipo de fogareiro grande, ao lado da mesa, em que são queimadas tabocas, ou bambus com que são confeccionados os instrumentos. Uma quartinha rústica, estatuetas de santos. Egberto Gismonti comenta:

 “Se eu já toquei com ele? Com João a gente toca todo dia. Não, não tocamos não. Mas não tem que tocar junto, quando a gente se encontra festeja estar junto e toca. Tocar junto não interessa, não é o mais importante. O importante é festejar o encontro é mais importante”. João do Pife, depois de muitos elogios ao amigo, agora escuta os que ele lhe dirige:

 “João é muito benevolente. Ele e o amigo dele aqui (refere-se a Marcos, o outro pifeiro). Eu me meto no meio, eles fingem que está ótimo, a gente fica rindo, é isso que acontece. Todas as pessoas com quem eu toco têm uma característica entre si: gostam de música. O João, não é questão de tocar bem ou não, a música gosta dele. De todos os músicos com que já toquei, poucos têm esta reverência. Este lugar em que estamos é um lugar de reverência, tem até um altar que ele botou aqui. A história de João é muito bonita, a dedicação, o respeito que ele tem pela música. É uma coisa muito linda”.

 Olha ao redor da oficina e continua: “Se por um lado, do ponto de vista métrico, isto aqui é muito pequeno, sobre o ponto de vista do que contém, aqui é um universo. Não dá para chegar, para olhar a parede, para ver se o lugar é grande ou pequeno, mas para ver que tamanho tem a música”

Pergunta-se a João sobre o futuro da banda de pífano: “Começou pelo meu bisavô, meu avô, meu pai. Hoje estou com 74 anos, e continua o pife vivo, a mesma cultura. Já passou para outra geração, meu filho, meus netos, e outras criaturas da escola que a gente ensina. O mundo vai acabar, com música de pife, e não acaba o pife.

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