Empoderada

'Senzala', de MC Xuxú, exalta orgulho trans, negro e da periferia

Álbum foi produzido de forma independente e tem participação da Mulher Pepita

Márcio Bastos
Cadastrado por
Márcio Bastos
Publicado em 07/02/2018 às 16:52
Divulgação
Álbum foi produzido de forma independente e tem participação da Mulher Pepita - FOTO: Divulgação
Leitura:

Nenhum país do mundo mata tantas pessoas transgêneras quanto o Brasil – só no ano passado, foram mais de 180 homicídios, segundo a ONG Grupo Gay da Bahia. Nesse contexto, o cenário de exclusão e medo é quase inevitável. No entanto, resistir é não só uma necessidade, como também uma postura política da comunidade, como aponta MC Xuxú, mulher trans que faz de sua arte barricada contra o preconceito. Em seu primeiro disco, Senzala, ela discute questões gênero, sexualidade e raça a partir de suas experiências.

Com o sucesso de Pabllo Vittar, que explodiu em 2017 e vem conquistando espaços privilegiados na mídia e nas paradas de sucesso, a abertura para artistas LGBT no mercado musical ganhou novo fôlego. Essa cena pulsante, porém, já vem sendo pavimentada há alguns anos e MC Xuxú está entre os nomes que viralizaram com refrões pegajosos. No seu caso, o primeiro gosto do sucesso veio com Um Beijo, lançado em 2014. “Um beijo para quem é DJ/ Um beijo para quem é MC/ Um beijo para quem é do bem/ Um beijo para as travestis”, canta na faixa dançante.

O reconhecimento de suas companheiras sempre foi um fator importante do trabalho de Xuxú, a exemplo também de Bonde das Travestis. O hedonismo e a vontade de se jogar e se divertir também aparecem em hits como Quero Ficar. A militância aparece tanto em forma de celebração – afinal, buscar ser feliz, mesmo diante da discriminação, é também um ato político – quanto de protesto. O clipe de Desabafo, de 2014, mostra a artista sendo agredida por conta de sua identidade de gênero. A canção clama por respeito às travestis e transexuais.

“Sempre fui politizada, mesmo inconscientemente. Venho do hip hop e no movimento aprendi que a gente tinha que entrar na música com alguma coisa para dizer. Para mim, o microfone e a caneta sempre foram armas”, afirmou a MC em entrevista por telefone ao Jornal do Commercio.

Natural de Juiz de Fora (MG), ela passou por experiências que, infelizmente, atravessam a história da maioria das pessoas trans. Aos 17 anos, ainda em processo de entendimento de sua sexualidade e identidade de gênero, ela se assumiu para a família enquanto homossexual. Foi expulsa de casa por seu padrasto e, na rua, passou a se identificar enquanto travesti. A conscientização em relação à sua identidade de gênero logo se manifestaria e ela entendeu que era, de fato, uma mulher trans.

OCUPAR E RESISTIR

Ciente de que queria expandir seu discurso e ocupar novos espaços, MC Xuxú, nome artístico de Karol Vieira, 29, decidiu gravar seu primeiro álbum. Chegou a inscrever o trabalho em um edital de sua cidade, mas a obra não foi aprovada. Segundo ela, as justificativas para a rejeição foram marcadas por discurso transfóbico.

“Ainda assim, senti que precisava fazer esse disco. Até então, só tinha trabalhado singles, que eu jogava na internet. Decidimos lançar uma campanha no Kickante [site de financiamento coletivo]. Apesar de não conseguirmos a quantia que pleiteamos, juntei com o dinheiro que ganhei em alguns shows, contei com a ajuda dos DJs, que fizeram o trabalho na amizade, de forma independente”, explicou.

O esforço da artista valeu a pena. Senzala é um disco forte, eclético e que a posiciona como uma voz potente da comunidade LGBT. Rap, funk, trap servem de trilha-sonora para relatos de sua vivência enquanto mulher trans, negra e de periferia. “Mulher de peito, pau e seu conceito não me abala/ Eu sou favela, sei do brilho da senzala/ Quase nunca sou bem-vinda, onde eu chego eu causo pane/ E eu sei que eu sou linda, quero mais é que se dane”, canta na faixa-título.

Em Vingancinha, ela exalta o poder da resiliência das trans e travestis e a necessidade de enfrentar o preconceito. “Resistência é isso: sobreviver/ (...) Eu quero meus direitos, seu respeito, por meus peitos/ Passar a visão independente do seu conceito/ (...) Eles falam muito, mas não fazem nada/ Quando batem de frente com uma trans empoderada”.

Kit Assume, parceria com Mulher Pepita, versa sobre a forma como a sociedade encara os relacionamentos envolvendo mulheres trans. Missa, com Danny Bond exalta a sexualidade e o desejo. Escoldada, com Escoldada Rt Mallone e Jovem Saga é talvez o mais próximo do pop do disco. Liberdade clama pela união da comunidade. “Me abrace forte, chore, pode dividir sua dor/ Resiste irmã, não desiste, então vai à luta/ Mesmo que te chamem de eterna prostituta”.

“O mundo está cheio de ódio, a gente tem medo, mas temos que enfrentar, falar, denunciar. Temos que gritar. Me ensinaram a ter medo de muita coisa e muitas vezes me fazem sentir como se eu não pertencesse aos lugares, como se fosse insuficiente. É difícil, mas a gente não pode se deixar intimidar. Vamos ocupar, mostrar que existimos”, clamou.

Últimas notícias