Os pés descalços de uma jovem dona de si descem e sobem as ladeiras do bairro da Linha do Tiro, na Zona Norte do Recife, com propriedade. Do alto de seus 1,68m e 52kg, Domitila Barros, quando era criança, não sonhava em ser modelo. E, sim, uma Chiquitita. A realidade de uma menina de periferia fez com que ela não desse tanta atenção para aquele sonho que parecia, naquele momento, impossível. Mas o destino e sua determinação fizeram sua parte, e o desfecho desta novela da vida real foi mais interessante. Mais precisamente, nas passarelas de Berlim, capital da Alemanha.
“Quando eu era pequena, eu tinha muitos amigos para brincar. Porque os meus pais fundaram o projeto Camm (Centro de Atendimento a Meninas e Meninos), onde eu cresci e comecei a me engajar socialmente”, conta Domitila. A ONG à qual ela se refere, fundada por Roberta e Ademilson, abriu as portas de sua casa para atender crianças e adolescentes da Linha do Tiro, oferecendo atividades de cultura e educação, incluindo ambiental, desde 1983.
No início do projeto, ainda com 13 anos, Domitila contribuiu para alfabetizar os jovens da comunidade, além de ministrar oficinas de teatro e dança. Não demorou muito para que ela chamasse a atenção da Unesco e, aos 15 anos, recebesse o Prêmio Millenium Dreamer – Sonhadora do Milênio, tornando-se uma embaixadora da periferia do Recife pelo mundo, realizando mais de cinco mil palestras em vários países.
Para fazer mais, Domitila se formou em Serviço Social na Universidade Católica de Pernambuco. E, após a conclusão, conquistou uma bolsa de mestrado em Ciências Políticas e Sociais na Freie Universität Berlin. E foi na capital alemã que ela foi descoberta artisticamente.
“Na época, eu só arranhava o alemão quando fui parada no meio da universidade e perguntaram se eu queria fazer um teste para uma novela”, conta Domitila. A trama em questão era Gute Zeiten, Schlechte Zeiten (Tempos Bons, Tempos Ruins), um folhetim de bastante sucesso na Alemanha, que está no ar desde 1992. E, logo no teste, sua beleza chamou a atenção de um dos diretores.
“Eles ficaram surpresos em ver uma negra com sardas. Geralmente eles demoravam três semanas para dar o resultado, mas recebi uma ligação no mesmo dia. Disseram que tinham gostado de minha autenticidade”, relata. A participação como atriz na novela alemã lhe abriu as portas e Domitila passou a estrelar várias campanhas publicitárias como Google e Volkswagen.
A novela da vida real poderia parar por aí. Mas a consciência social de Domitila – cidadã alemã há dez anos – falou mais alto e ela sempre sentiu que deveria retribuir tudo o que conseguira mundo afora. E o lugar não podia ser outro: a sua comunidade.
“Quando volto a pensar na minha vida, os caminhos que passei... Tudo isso aconteceu, não foi porque vim de família rica. Não foi porque estudei em Harvard, não foi porque fui a melhor aluna do curso. Foi porque as competências sociais que adquiri na minha infância, lidando com pessoas diferentes, tendo que aprender muito cedo a ser resiliente, me possibilitaram acreditar em mim e que é possível”, afirma.
Após lutar pela sua sobrevivência e conquistar o seu lugar no mundo, ela queria encorajar mais pessoas do bairro onde cresceu. E a atitude veio sob a forma do empreendedorismo. Assim nasceu, há um ano e meio, a marca de moda praia Sheisfromthejungle (uma brincadeira com a expressão “ela é da selva”, em tradução livre).
“Eu criei a marca, faço os desenhos dos biquínis e procurei amigas, mulheres da comunidade onde cresci, para fazer esses biquínis”, explica. Algumas delas, mães solteiras, foram capacitadas em costura e crochê pela ONG para dar vida à essas roupas, que também recebem parte dos lucros. O nome da marca, ela mesmo explica.
“As pessoas, tanto do mestrado quanto nas gravações da novela, me consideravam ‘selvagem’, devido ao modo mais comportado deles. E onde eu chego, falo, grito, corro, danço, pulo, faço um monte de coisa! Mas era aí que eu me destacava deles. [...]Por isso diziam que eu era ‘a garota da jungle’ (selva). Então resolvi usar isso ao meu favor”, comenta.
MULHERES REAIS
Segundo Domitila, a marca de roupas se inspira na mulher do dia a dia. Através dos biquínis a ideia é dar autoestima e empoderamento às mulheres para assumirem seus corpos, seja em qual formato for – do P ao GG.
Todo o conceito da Sheisfromthejungle envolve ideologia social e moda regional e, aos 34 anos, ela fará sua estreia na Semana de Moda de Berlim, de 14 a 18 de janeiro. Além de assinar como designer, Domitila também vai encarar as passarelas.
“Todas as modelos – que são amigas envolvidas de maneira voluntária – estarão descalças, representando o povo que desenvolve a marca. Isso já será uma quebra de tabu. Levaremos vários tipos de corpos e nacionalidades. E, ainda, todos usarão as sardas no rosto, que se tornou a minha marca por lá”, revela ansiosa.
Quando os holofotes da passarela se acenderem em Berlim, os pés descalços de Domitila – hoje modelo, atriz e empreendedora –, que tanto subiram e desceram um morro da periferia pernambucana, levarão consigo não só uma história de vida vitoriosa, mas também um trabalho coletivo de várias mulheres que, assim como ela, modificaram suas vidas através do talento e do trabalho.
“Às vezes você tem que viver para entender. Só quando finalizar o evento é que a ficha vai cair desse sentimento de realização e de responsabilidade. O maior aprendizado disso tudo foi que sonhar é preciso, além de fazer acontecer. E, a partir da agora, pode ser o sonho mais louco, que eu vou apostar nele, porque sei que é possível”, conclui a “selvagem” Domitila Barros.