Jazz e r&b

'When I Get Home': Solange aprofunda experimentação em disco

Cantora borra fronteiras de gêneros musicais e reforça poética destemida

Márcio Bastos
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Márcio Bastos
Publicado em 07/03/2019 às 11:48
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Cantora borra fronteiras de gêneros musicais e reforça poética destemida - FOTO: Reprodução
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Em God Given Name, faixa de abertura de seu segundo disco, Sol-Angel and the Hadley St. Dreams (2008), Solange declara: “Eu não me tornarei as expectativas/Eu não sou ela e nunca vou ser”. “Ela”, claro, era sua irmã, Beyoncé. A cantora sabia das comparações que viriam por enveredar pelo mesmo ramo profissional, mas sua disposição em trilhar o próprio caminho lhe deu uma liberdade artística que sua irmã popstar não tinha então e aproximou Solange do universo indie. Onze anos depois, ela não precisa mais traçar barreiras que a separem de Beyoncé, tendo se estabelecido como uma das artistas mais respeitadas de sua geração. No seu recém-lançado quarto álbum, When I Get Home, ela reforça seu ousado projeto artístico, entregando um trabalho experimental com muitas nuances.

Ser diferente de Beyoncé, para Solange, nunca significou ser “anti-Beyoncé”, como ela já afirmou em uma entrevista. “Pelo contrário, sou a pessoa mais pró-Beyoncé que você conhecerá”, disse. Para ela, se entender enquanto artista sempre foi a força-motriz de seu trabalho. Enquanto seu primeiro disco, Solo Star (2002), lançado quando ela tinha 14 anos, tinha uma natural inocência adolescente, e não fugia muito do r&b feito na época, o segundo álbum Sol-Angel and the Hadley St. Dreams já mostrava uma ousadia sonora, influenciada pelo soul dos anos 1960 e também por artistas mais alternativos, como Erykah Badu.

O EP True (2012), lançado de forma independente, foi definido por ela como um momento de transição enquanto artista. No caldeirão de Solange, misturaram-se r&b, neo soul, hip hop, elementos de música eletrônica e new wave, com letras mais cruas e reveladoras. Abraçada pelo público alternativo, se tornou uma espécie de musa indie e passou a influenciar Beyoncé, que credita a Solange os riscos artísticos que tomou nos últimos anos em seus discos mais aclamados, como o Lemonade (2016).

Com seu terceiro disco, A Seat at The Table, Solange criou uma obra que discutia questões ligadas à negritude e às experiências das mulheres negras a partir de suas experiências. O álbum ganhou um Grammy e apareceu nas principais listas de melhores do ano das publicações internacionais. Sobre o disco, o Pitchfork escreveu: “É uma oferta de consolo para quem trabalha para a sua própria glória, e para aqueles cujo direito à dignidade está muito atrasado.”

PROCESSO

Nesse processo, Solange também passou a se envolver em outras áreas criativas, como curadoria e criação audiovisual. When I Get Home soa como uma continuação natural desse projeto, e coloca Solange em um diálogo direto com sua cidade de nascença, Houston. Várias faixas do disco fazem referências à cultura do local, seus artistas e tradições, e levam nomes de lugares que marcaram sua trajetória. Mas, não há aqui um tom saudosista e, sim, de uma ressignificação dessas memórias – ou de como esses sons, cheiros, vivências, a formaram.

O álbum é fortemente inspirado no jazz e as canções podem soar estranhas por não seguirem uma estrutura pré-determinada. E aí reside uma das razões do fascínio que as faixas causam. Não há uma sensação de explosão ou urgência, sugerindo mais um convite à imersão. O disco é coeso em sua estranheza, experimentação.

Responsável por todas as letras e melodias, a norte-americana faz do trabalho uma expressão honesta de seu processo de autoconhecimento/crescimento, como explicitado pelo interlude Can I Hold The Mic. Nele, Solange explica: “Não posso ser uma expressão singular de mim mesma, há muitas partes, muitos espaços, muitas manifestações, muitas linhas, muitas curvas, muitos problemas, muitas viagens, muitas montanhas, muitos rios, tantos”.

Em Down With The Clique, ela celebra mais uma vez sua admiração pelo jazz de Nova Orleans. Ela também celebra o chopped e screwed – técnica que diminui o ritmo da música, enfatizando as letras – de Houston na excelente Almeda e em My Skin, My

Logo, onde ela dialoga com o rap (o rapper Gucci Mane faz uma participação na canção). Em ambas as faixas, a questão racial está presente como uma forma de celebração de identidade.

A repetição é outra característica das composições de Solange neste álbum, como mostram Things I Imagined, Stay Flo, Beltway, Time (is) e Dreams. O efeito atingido se aproxima do que a Dramaturgia do Absurdo muitas vezes provoca, com uma palavra ou frase ganhando novos significados – às vezes totalmente divergentes – à medida em que é dita vez após vez.

Nesse sentido, o disco se afasta um pouco mais dos anteriores da artista por não criar uma narrativa explícita – não há necessariamente uma história sendo contada em cada faixa, mas sim uma construção sensorial e poética. Canções podem terminar no que suporíamos ser seu clímax, sem maiores explicações ou ainda se estenderem e transformarem quando se imaginava que tinham chegado ao fim.

No intermission We Deal With the Freak’n, ela utiliza uma gravação de Alexyss K. Tylor para tratar do sagrado feminino. As referências de Solange passam ainda pela espiritualidade e por questões ligadas às religiões de origem africana.

Na faixa que encerra o disco, a minimalista I’m a Witness, ela parece dialogar diretamente com o divino. Ela deixa espaço para o etéreo, por vezes cantando quase a capella, em outras quase com um coral criado pelo eco de sua voz. “Eu não vou parar até acertar”, afirma.

Essa disposição para acertar não de uma forma matemática, mas de honrar sua verdade, é um dos aspectos mais fascinantes de Solange enquanto artistas. E, nessa jornada, o erro não está descartado – ele é parte do aprendizado.

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