Luto

Zé do Carmo morreu sem conseguir montar seu museu

Artista nascido em Goiana faleceu na sexta-feira (26), aos 85 anos

Mateus Araújo
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Mateus Araújo
Publicado em 26/04/2019 às 18:46
Alexandre Gondim/Divulgação
Artista nascido em Goiana faleceu na sexta-feira (26), aos 85 anos - FOTO: Alexandre Gondim/Divulgação
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Negro e pobre, Zé do Carmo não podia ser padre. Era o sonho da mãe dele, mas o pároco minou a ideia: seria caro demais manter um filho seminarista. Ele virou sacristão. Questionador e inquieto, Zé do Carmo também não podia dar forma que quisesse à sua fé. Queria se enxergar – negro, pobre e nordestino – nas feições dos anjos que decoravam as igrejas, mas a mãe achava sacrilégio demais. Ainda assim, insistiu.

Nascido e criado em Goiana, Zona da Mata Norte de Pernambuco, Zé do Carmo morreu nesta sexta-feira (26), aos 85 anos, após uma parada cardíaca, segundo seus familiares. O corpo dele foi enterrado no final do dia, no cemitério da cidade.

Seu Zé aprendeu o ofício de artesão ainda pequeno. A mãe, Joana Izabel de Assunção, era lavadeira e uma das mais famosas ceramistas de Goiana; e o pai, Manuel de Souza dos Santos, era padeiro que nas horas vagas fazia máscaras de papel machê para serem vendidas nas feiras livres. Zé do Carmo, no entanto, juntou a habilidade à imaginação provocativa, e gravou seu nome em dezenas de peças de barro e cerâmica e em telas de óleo notoriamente conhecidas pela ousadia.

“Quando eu era pequeno, costumava ir com os outros meninos caçar passarinho, derrubar com bodoque. Minha mãe dizia para que eu não fizesse aquilo. Eu geralmente, por isso, ficava só olhando os pássaros. Um dia, quando voltei pra casa, resolvi colocar asas em um dos bonecos que eu tinha feito. E ficou como um anjo. Mas minha mãe reclamou, disse que aquilo era errado”, lembrou ele, em entrevista ao JC, em 2013, para a reportagem especial sobre os Patrimônios Vivos de Pernambuco, título que ele recebeu do Estado em 2005. 

Dona Joana, católica, pediu ao filho que não fizesse mais aquele tipo de coisa. E ele atendeu. Só voltou a fazê-los, entretanto, quando a mãe morreu. Dali em diante, criou esculturas e pinturas de santos e anjos trajando roupas de cangaceiros; quando não, aproximou personagens bíblicos de figuras nordestinas – é o caso, por exemplo, de Zumbi dos Palmares comparado a Moisés, e dos três Reis Magos cujos nomes Gaspar, Belchior e Baltazar foram “regionalizados” por seu Zé como Severino, Benedito e Amaro.

“Fiz uma exposição aqui em casa para os turistas que visitavam Goiana. Teve gente que elogiou, mas outros estranharam. Quem reclamava eram os católicos praticantes, que são radicais, né?", lembrou, em outra ocasião, há 4 anos.

O que muitos consideravam provocação era, na verdade, uma maneira de Zé do Carmo, ao seu modo, tentar subverter uma narrativa dogmática na qual ele não se sentia acolhido. Os anjos loiros, os santos brancos, a fé com ares europeus, não combinavam em nada com quem frequentava a Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos. Eram mundos opostos, distantes.

Certa vez, do seu jeito de crer, Zé do Carmo fez um presente para o papa João Paulo II, durante a visita dele ao Brasil, em 1980. A estátua de 1,5 metro de um cangaceiro com asas, ou um anjo cangaceiro, foi proibida pelo então arcebispo de Olinda e Recife Dom Helder Câmara. “Como você pode dizer que cangaceiro é anjo, Zé do Carmo?”, questionava Dom Helder. “O senhor está julgando o cangaceiro?”, retrucava o artista. A história se transformou numa espécie de lenda, sempre recontada por ele.

CERCADO DE ARTE

O mundo de Zé do Carmo era guardado com afinco por ele mesmo na casa onde morou, no centro de Goiana. Ele, a mulher e o filho dividiam espaço com as obras de arte, com um sonho de transformar esse acervo em museu. O que terminou por não realizar. Numa das últimas conversar com o Jornal do Commercio, em 2015, seu Zé, com a saúde debilitada, reclamava a falta de apoio público para realizar o projeto que fomentava desde 1960. “Eu vou morrer, mas isso tudo vai ficar para vocês. Concorda?”, dizia.

Da última vez que fizemos matéria com ele para o JC, em 2015, já estava bastante debilitado. Em decorrência de um glaucoma, não enxergava bem, além disso, tossia bastante e sentia dores no peito – contou que tinha uma macha no pulmão, depois de décadas trabalhando com tinta óleo sem proteção. Com a recomendação médica para parar as atividades, ele dizia que pintava durante os sonhos.

Zé do Carmo morreu sem conseguir criar o seu tão sonhado museu. Um projeto que ele alimentava havia décadas, mas sempre se queixou da falta de apoio público. Talvez tenha sido esse o único desafio que não conseguiu superar. É mais um artista Patrimônio Vivo que morre sem deixar seu legado salvaguardado como de fato merecia. Importante pensarmos que apenas a pensão que recebem do Estado não é suficiente para manter uma história; é preciso criar estofo para o futuro, para que essas pessoas tenham suas artes mantidas, preservadas.

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