Durante visita a São Paulo, em abril de 2006, Tenzin Gyatso, o Dalai Lama, reuniu no interior e na praça em frente à Catedral da Sé milhares de pessoas ávidas por ouvir suas palavras. Sentados ao lado da autoridade maior do budismo tibetano, e Prêmio Nobel da Paz de 1989, líderes do catolicismo, protestantismo, judaísmo, hinduísmo, islamismo, de cultos afro-brasileiros, entre outros. O clima era de muito respeito mútuo e integração. Escrito pelo alemão Frank Usarski, acadêmico do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC de São Paulo, O Budismo e as outras – Encontros e desencontros entre as grandes religiões mundiais (Ideias & Letras) oferece elementos para compreensão e expansão de diálogos inter-religiosos e culturais como o descrito acima, apesar de o autor reconhecer a dificuldade de um entendimento mais profundo entre adeptos de todas as crenças espirituais institucionalizadas.
No livro, Usarski aborda os diálogos estabelecidos, no decorrer da História, entre a religião de Siddarta Gautama, Buda – que viveu entre 560 a.C. e 480 a.C, na Índia – e o hinduísmo, islamismo, judaísmo e cristianismo. Curiosamente, o livro mostra que os maiores conflitos do budismo em relação a outras crenças se deu justamente com o cristianismo – fé com a qual, na atualidade, budistas mantêm maior grau de proximidade, conversações e troca de experiências. Em suas primeiras incursões proselitistas a China, missionários jesuítas europeus primeiramente utilizavam-se do método da acomodação - ou seja, associar elementos das crenças locais a religião estrangeira.
A princípio a convivência era pacífica, mas o bom relacionamento entre adeptos do budismo e do cristianismo começou a estremecer quando, a partir de 1603, os jesuítas deixaram mais claras suas reais intenções (a conversão de chineses em cristãos) e passaram a atacar por meio de publicações não só as ideias budistas, como também o taoísmo e o confucionismo. Inicialmente passivos diante das agressões dos visitantes, budistas começaram a refutar tais ataques lançando cartas e outros escritos. Em um desses, o leigo budista Yu Shun-hsi acusava o jesuíta Matteo Ricci de contaminar negativamente a atmosfera pacífica existente entre as religiões chinesas. O clima de hostilidade culminou com a decisão do imperador chinês Yongzheng (1678-1735) de proibir os cristãos de agir no país asiático, em 1724. Mais tarde, por volta de meados do século dezenove, com o intercâmbio comercial entre Oriente e Ocidente, tanto católicos quanto protestantes voltaram a se instalar na China.
Exemplos de indisposições como a relatada se repetiram em maior ou menor grau na Índia, Sri Lanka e Japão, sendo que neste a violência se fez mais presente com senhores feudais e regentes ligados aos cristãos promovendo a destruição de templos e mosteiros budistas e santuários xintoístas e a construção de igrejas no lugar desses. O padre Gaspar Vilela (1526-1572) chegou a sugerir a um aliado japonês a queima de livros e imagens budistas. A fim de combater a “religião do mal ocidental”, japoneses passaram por cima dos ensinamentos de não-violência pregado por Buda e iniciaram perseguições ao cristãos. O clima de guerra entre as duas religiões no Japão começou a se arrefecer na passagem do século dezenove para o vinte. Realizado em 1893, em Chicago, o Parlamento Mundial das Religiões contribuiu para o início do entendimento entre integrantes das duas denominações.
De acordo com Usarski, o reconhecimento pela Igreja Católica da importância e respeito a outras religiões, abriu grande espaço para conversas amistosas e auspiciosas entre religiosos cristãos e intelectuais não só budistas como de outras denominações. As constantes viagens de intercâmbio e o discurso de estímulo à tolerância do Dalai Lama e os estudos e conversas promovidas pela Escola de Kyoto também têm contribuído fortemente para o entendimento inter-religioso.
Apesar desse cenário positivo, Frank Usarski diz existir no senso comum noção bastante inocente de que “bem lá no fundo”, todas as religiões têm objetivos semelhantes e se unem no desejo de paz e harmonia no mundo. Afora questões éticas e altruístas (defendidas igualmente por ateus e descrentes humanistas), as divergências filosóficas e metafísicas entre as religiões, abstraídas de modo ingênuo por idealistas, são fortes impeditivos para a construção de uma atitude mais universalista entre os povos do planeta. Citando os autores John D´Arcy May e Schmidt-Leukel, Usarski registra em seu livro: “cada tradição religiosa tem suas próprias maneiras, às vezes sutis, às vezes mais ofensivas, de afirmar não apenas sua originalidade, mas também sua superioridade sobre todas outras”.
Leia a matéria completa no Caderno C desta quarta (2).