Quando em 2010 se instituiu a Lei nº 12.305 para implantação da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), a expectativa era de que em quatro anos o problema dos lixões no país estaria resolvido. A lentidão do aparelho burocrático brasileiro, no entanto, impediu que em 2014 a realidade fosse extinguida pelos municípios. Uma emenda apresentada pelo senador pernambucano Fernando Bezerra (PSB) prorrogou esse prazo para aplicação da política de 2018 até 2021.
Além de prejuízo ambiental, devido à exposição dos resíduos à céu aberto, o descaso social com quem trabalha nesses espaços é outro agravante do mantimento desses locais.
Quem vive na pele a situação, apesar da timidez, não furta a dar depoimento sobre a lida diária. A exposição, neste caso, vem com um apelo: “Pelo menos alguém sabe da situação da gente, alguém que pudesse nos ajudar em qualquer coisa”, afirma Silvânia, catadora desde os 15 anos, que trabalhava no antigo Lixão de Aguazinha (Olinda).
Ela é uma das personagens do catálogo ReliXX, idealizado pela publicitária Lina Rosa em parceria com o Sesi Pernambuco, lançado nesta terça (10), às 11h, no Lixão de Aguazinha. O nome é sugestivo: “XX”, cromossomo feminino, metáfora para a intenção de contar histórias de seis catadoras de lixo recifenses. “As mulheres são de fato quem estão na frente dessa cadeia produtiva, são divas que trabalham silenciosas, divas de um desenvolvimento muito importante, porque elas além de fazer o trabalho de coletar e separar e disponibilizar para reciclagem, reaproveitam tudo que encontram no lixo nas suas próprias casas”, enfatiza Lina.
A escolha foi pelo Lixão de Aguazinha, recém-fechado em Agosto de 2017, dando lugar à Associação dos Recicladores de Olinda que, já mostrou o JC em matérias anteriores, ainda encontra dificuldades de apoio do poder público. “Esse processo de transição está sendo muito doloroso para elas, algumas estão na ARO, outras estão trabalhando com bico em coleta de eventos e shows, mas elas estão muito vulneráveis, e a gente conta essas histórias e mostra como elas são exemplares”, explica a idealizadora.
O exemplo de que fala está na prática dos 5 R’s (reduzir, repensar, reutilizar, recusar, reciclar), refletidos na casa das catadoras, cujos objetos são originários em maioria do lixão, devido à falta de condições financeiras. Ada, Lúcia, Renata, Silvânia e Silvaneide abriram suas vidas e suas casas para o projeto que, desde 2014, atua com foco na conscientização sobre a coleta seletiva e novas formas de produzir e reciclar o lixo. “Elas se empoderam muito quando a gente faz esse tipo de produção”, diz Lina.
O catálogo é o primeiro em Pernambuco e conta com fotografias de Beto Figueiroa, e crônicas de Lina Rosa. Outro foi lançado em 2017, em Alagoas e teve fotografias assinadas por Hélder Ferrer. A publicação encerra o ciclo do projeto que inclui diversas ações: teatro, com o Espetaculixx (somando 170 apresentações), exposições, distribuição de histórias em quadrinhos (somando 35 mil), intervenções urbanas e ações educativas em escolas públicas e privadas.
Além de um aplicativo chamado Relix que pode ser baixado no Android ou IOS e, desde a concepção em 2013, já possui mais de 2 mil downloads. O app mapeia pontos de coleta seletiva e cooperativas de catadores próximas à localização do usuário. No dia do lançamento haverá também a exposição das ciclolix (bicicletas que substituem a carroça e possuem uma estrutura que facilita o trabalho de coleta), no entanto, ressalta a idealizadora, o objetivo é estimular o empoderamento do cidadão que produz o lixo, para não ser necessária a ida do catador. Também haverá apresentação do espetáculo argentino Sopa de Estrelas, de curadoria de Lina, que trata do tema.
Guerreiras
Um dos sinônimos para o verbo “Invisibilizar” é “tornar impossível”. A invisibilização social, aquela que se dá no espaço público (espaço da socialização, em que as condições sociais e econômicas do indivíduo vêm à tona), não torna mesmo quase impossível a implantação de políticas públicas capazes de permitir uma melhora de vida a determinados grupo?
Lina Rosa questiona: “Se o exemplo delas (das catadoras) é tão civilizado, como é tão pouco valorizado e por que é tão pouco ofertado para elas?” E complementa: “Muitas delas se queixam porque as pessoas confundem que elas são o próprio lixo”. Se ser mulher é difícil, em condições de vulnerabilidade social mais ainda.
Silvânia, que agora é catadora independente, possui quatro filhos e um deles foi o primeiro a entrar em contato com a vida nos lixões, quando aos 15 anos ela iniciou nesse trabalho. Em 2011, um dos filhos caiu do caminhão e até hoje as sequelas na perna são visíveis. Ela diz que a vida foi sofrida e a comida é escassa até hoje. “Nós estamos passando necessidade, a gente ajuda o outro, porque eu tenho quatro filhos mas tudo são de maior. As dificuldades da gente é um dia ter m um pedaço de carne, no outro dia não ter. Nem pra pedir nesse lugar presta, que ninguém dá”, lamenta, em um tom de quem já se acostumou com a dura realidade.
O fótografo Beto Figueiroa lembra que Silvânia foi a mais difícil para fotografar, devido a sua timidez. O trabalho de pré-produção ficou por conta de Gabi Galindo, que fez o primeiro contato com as catadoras, selecionando as histórias que seriam contadas. Um contato delicado. “É sempre muito orgânico, muita coisa de respeito, atenção, e mesmo de intuição”, explica Beto. A publicação será distribuída para entidades que possam contribuir com a causa. “A maior parte desses catálogos vai para fora desse universo para ajudar a transformar e melhorar a realidade delas”, finaliza Lina.