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Cultura do cancelamento: quem não foi ainda será

Termo do ano de 2019, a cultura do cancelamento vem tomando conta das redes sociais de forma cada vez mais rápida. Não parece haver espaço para erros e arrependimentos na internet

Valentine Herold
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Valentine Herold
Publicado em 01/03/2020 às 7:00 | Atualizado em 05/03/2020 às 14:18
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Termo do ano de 2019, a cultura do cancelamento vem tomando conta das redes sociais de forma cada vez mais rápida. Não parece haver espaço para erros e arrependimentos na internet - FOTO: Foto: Pedro Escobar/ Divulgação
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Atenção, atenção, a Central de Cancelamento adverte: dentro de poucos meses, todos que se encontram no universo das redes sociais serão cancelados. Não é o começo de um conto distópico nem de um episódio da série Black Mirror, a inquisição da internet – em que todos se tornam juízes da vida alheia – já faz parte da realidade e vem se intensificando com a popularização das redes sociais digitais.

Você pode nunca ter ouvido falar em "cultura do cancelamento", mas o conceito está tão presente na dinâmica da internet que foi inclusive eleito pelo dicionário australiano Macquarie no último mês de dezembro como o termo do ano de 2019. É um fenômeno mundial que vem ganhando no Brasil contornos cada vez mais nítidos e que consiste basicamente em boicotar alguém a partir de um acontecimento pontual.

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Já em 2013, o músico Tom Zé passou por uma situação que revelava como a intolerância popular com qualquer tipo de incoerência ou deslize tomaria novos rumos. Ele emprestou sua voz para um comercial da Coca-Cola, foi duramente criticado e, em resposta, lançou o disco Tribunal do Feicebuqui, em que satiriza os rótulos de vendido e traidor que lhe foram dados.  Sete anos se passaram e os boicotes e linchamentos virtuais se intensificaram ao ponto de ganharem um termo próprio.

O movimento, que nasceu com um imenso (e necessário) potencial de pluralizar as visões de mundo que não tinham espaço na mídia tradicional e de reparar grandes injustiças e crimes sociais, corre o sério risco de se tornar apenas uma caricatura de si mesmo, ao projetar no outro uma impossível vida “perfeita sem defeitos”.

Para a socióloga Rebecca Portela Melo, o contexto brasileiro das eleições de 2018, que acentuou a polarização política, contribuiu para a intensificação da cultura do cancelamento. “O fato é que as redes sociais têm ocupado cada vez mais um espaço que se pretende democrático e ascético, chegando a substituir, no imaginário popular, o lugar das antigas ágoras gregas. O que vimos a partir de meados de agosto de 2018 foi a transformação deste espaço virtual em verdadeiras arenas nos moldes do Coliseu, onde indivíduos comuns assumem o lugar de gladiadores e passam a defender não a si próprios em oposição aos animais, como acontecia em Roma, mas disputam e advogam sobre ideias, partidos políticos, candidatos, causas, entre outros”, avalia.

Casos recentes

Poucos dias antes do Carnaval, Alessandra Negrini foi alvo de cancelamentos por ter saído caracterizada de índia em um bloco paulista. Internautas apontaram que não é justo quem se encontra em uma posição de privilégio fazer uso da imagem de um povo que foi historicamente silenciado. De fato, a questão do uso de certas fantasias ofensivas a minorias já vinha sendo debatido nos últimos carnavais. Quem saiu em defesa da atriz alegou que a mesma estava acompanhada da líder indígena Sônia Guajajara e que isso lhe daria legitimidade.

O Carnaval começou e seguiu com as opiniões divididas. Enquanto a folia tomava conta das ruas, os confinados do Big Brother Brasil não saíram ilesos das polêmicas. A empresária e youtuber Bianca Andrade, por exemplo, totalizava 8 milhões de seguidores em seu Instagram quando entrou no programa em janeiro. Entretanto, por sua falta de apoio às mulheres da casa e por ter se aproximado demais de um rapaz mesmo tendo namorado, ela foi automaticamente cancelada e perdeu 80 mil seguidores em pouquíssimo tempo. Sem chances de ser perdoada em uma sociedade que não esquece facilmente dos erros de uma mulher, ela acabou sendo eliminada do programa na última terça-feira.

O influenciador digital alagoano Carlinhos Maia é outra figura que, semana sim, semana não, é cancelado, seja pelo seu excesso de opiniões ou por ter demonstrado em diversas ocasiões uma visão considerada estereotipada do que é ser gay. Mas talvez a rainha dos cancelamentos seja a cantora Anitta, principalmente por questões políticas (na verdade, pela constante ausência delas) e por supostamente levantar a bandeira das causas LGBTs apenas quando lhe convém financeiramente e muitos deixaram de ouvir suas músicas.

Letrux, cantora carioca, também foi alvo dos twitteiros de plantão recentemente. Acusaram-a de ser elitista depois de ter compartilhado em sua rede social que, quando criança, costumava ouvir as canções do compositor de música clássica Johann Sebastian Bach e se emocionar. Ela ironizou as críticas e seguiu em frente na divulgação de seu próximo álbum. Na análise do professor e doutor em Comunicação e Cultura Contemporâneas, Thiago Soares, há um aspecto performativo no ato de cancelar alguém.

"É importante dimensionar toda essa cultura na era das redes sociais digitais e pensar sobre que noção de coerência queremos dos sujeitos. Essa ideia nasce na virada da Idade Moderna, a partir da noção de racionalidade. Mas depois, com o advento da psicanálise, tudo isso foi questionado e percebemos que o sujeito é, sim, falho. A ideia de que alguém é completamente coerente, nunca comente erros, é uma utopia e uma falácia”, diz. “A cultura do cancelamento está muito ligada à esfera das celebridades porque elas são, de certa forma, o epicentro do tecido social, a gente despeja nossos desejos e sonhos a partir de suas vidas."

Quando o cancelamento vira ódio

Em certos casos, o cancelamento ultrapassa as barreiras da ironia e se transforma em ódio e ameaças. O podcast Mamilos, muito popular entre o público que consome internet diariamente e comandado por Juliana Wallauer e Cris Bartis, foi alvo deste tipo de violência no início do mês. Um episódio sobre finanças pessoais contou com a presença de dois youtubers especialistas no assunto, sendo um deles Nathália Rodrigues, uma mulher negra que foca em conteúdo voltado para pessoas que não tem grandes rendas e querem começar a investir.

Durante a conversa, as apresentadoras acabaram dando menos espaço para a jovem se expressar do que para outro convidado, um homem com cerca de 3 milhões de inscritos em seu canal, e emitiram muitas opiniões pessoais. Foram apedrejadas virtualmente e Cris Bartis, mãe de uma menina negra, recebeu ameaças de cunho pessoal.

"O ódio sempre fez parte da nossa cultura e ele assume a forma do seu tempo. O tempo atual é o virtual. Por enquanto é cancelamento e daqui a pouco vai ser outra forma. O ideal seria realmente conversar de onde vem o ódio e debatermos suas causas e saídas, mas pra isso precisamos de um tecido social fortalecido, que permite diálogo. Situação que estamos bem distante hoje em dia", pontua Cris.

A lista de celebridades canceladas é longa e a velocidade com que os boicotes são feitos impressiona: apagamos, anulamos alguém com a mesma rapidez que pedimos um refeição por aplicativo de entrega ou postamos uma selfie. Em pouquíssimos cliques e apenas 140 caracteres emitimos opiniões sobre tudo e nada, negando ao outro o direito demasiadamente humano de errar, mudar de opinião ou até mesmo de se arrepender, esquecendo a partir de um acontecimento específico tudo de construtivo que a pessoa ou o grupo já realizou.

Há casos em que, de fato, a exposição virtual tem seus méritos e auxilia no combate a atitudes intoleráveis. E outros em que os comentários acabam revelando muitos mais dos canceladores do que dos próprios cancelados.

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