Davi tem apenas sete meses e um desafio para toda a vida: o de ter um desenvolvimento o mais pleno possível apesar do diagnóstico de microcefalia. O pequeno faz parte das assombrosas estatísticas da má-formação no Brasil. De acordo com o Ministério da Saúde, entre agosto de 2015 e fevereiro deste ano, foram identificadas 5.640 suspeitas da microcefalia em crianças. Em 2014, o número de registros no País mal chegou a 150. O vírus da zika é o principal suspeito do aumento exorbitante do desenvolvimento incompleto do crânio.
O que os números não contam é que, tão grande quanto a necessidade de cuidado diferenciado para estas crianças é o desamparo sofrido por seus cuidadores dentro das empresas em que trabalham. Diversas companhias infringem a legislação e dificultam a vida de mães e pais no acompanhamento adequado das crianças em consultas médicas. Não raro, as histórias de cuidadores de filhos com necessidades especiais são marcadas por descontos salariais, assédio moral e até demissões.
A mãe de Davi se chama Mylene Ferreira e tem 22 anos. Descobriu estar grávida quando trabalhava como atendente em uma empresa de telefonia. Durante a gestação, só conseguiu realizar cinco consultas de pré-natal. “Eles não aceitavam mais de cinco atestados durante toda a gravidez, aí não consegui fazer todos os exames”, comenta.
Não parou por aí. Durante a licença-maternidade, a trabalhadora recebeu ameaça de desligamento da empresa. “Quando Davi nasceu e veio o diagnóstico de microcefalia, eu já sabia que ia precisar levá-lo no médico diariamente. Por causa disso, a empresa ameaçou me demitir”, completou. Pouco depois, ela própria resolveu sair do emprego para se dedicar ao filho.
Segundo a procuradora do Ministério Público do Trabalho em Pernambuco (MPT-PE) Melícia Carvalho, o direito das gestantes de faltar ao trabalho sem descontos salariais para comparecer às consultas de pré-natal e exames complementares está completamente assegurado pela legislação. “Nenhuma mulher pode sofrer sanção por cuidar da própria saúde e da do filho em um momento tão especial e também delicado, principalmente nesses casos de necessidades diferenciadas”, comenta.
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Ainda de acordo com a promotora, também é possível a gestante negociar troca de função caso a que ela exerce seja incompatível com sua condição física. “Quem trabalha como vendedora em uma loja, por exemplo, e passa o dia em pé, pode falar com o empregador para assumir uma função de caixa e ficar mais confortável”, orienta a promotora. Melícia lembra que a troca de função deve ocorrer sem rebaixamentos no salário.
Quando nasce a criança, além do direito à licença-maternidade, de 120 dias (estendida em algumas empresas por até 180 dias), a legislação protege mães de serem demitidas. A lei vale desde o momento da confirmação da g
estação até cinco meses após o nascimento da criança. “É o chamado direito à estabilidade provisória. Ele garante que as mães não sejam demitidas e possam continuar participando de programas de qualificação profissional, entre outras vantagens”, revela.
Na volta ao trabalho, até a criança completar seis meses, a profissional também tem direito de se ausentar durante dois intervalos de trinta minutos por dia para amamentar.
Se a criança tem uma condição de saúde mais frágil que requer acompanhamento intenso, é possível fazê-lo. “Basta levar atestados e laudos médicos que comprovem a condição especial dos filhos”, orienta a promotora. O próprio Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) confirma que é dever da família garantir direitos referentes à vida e à saúde de crianças e adolescentes.
Caso desobedeçam às normas, empresas podem ser denunciadas ao Ministério do Trabalho através do site do órgão ou pessoalmente, na sede do MPT, localizado na Rua Quarenta e Oito, número 600, Espinheiro.
Benefícios fiscais - Aprovada em setembro de 2008, a Lei 11.770, conhecida como Lei da Empresa Cidadã, estabelece a extensão voluntária da licença-maternidade de 120 para 180 dias. Firmas que aderem ao benefício poderão deduzir de impostos federais a remuneração integral da funcionária. A regra é válida desde que as empresas tenham tributação sobre lucro real. As que declaram pelo lucro presumido ou pelo Simples podem participar, mas não têm direito à dedução.
Apesar da existência da lei, apenas 18.697 empresas em todo o País assumiram a responsabilidade de estender a licença. O número equivale a pouco mais de 10% das empresas brasileiras que se enquadram no regime tributário sobre lucro real. A opinião da procuradora do Ministério Público do Trabalho em Pernambuco (MPT-PE) Melícia Carvalho é que falta empatia.
“Empresas precisam estar mais conscientes de que o vínculo entre mãe e bebê é essencial para os dois lados”, comenta. A promotora também reitera que o oferecimento apenas dos direitos mais básicos nem sempre é capaz de garantir a permanência no trabalho, causando abandono da função e comprometendo a renda familiar.
Mesmo a gestante não tendo nenhuma obrigação de comunicar os gestores sobre o início da gravidez, a promotora do trabalho defende que ter essa conversa facilita um diálogo mais aberto, principalmente quando as crianças tem alguma deficiência. “O empregador já vai ficar ciente de que a mulher vai precisar se ausentar mais vezes para realizar acompanhamento da gestação. Os direitos dela não dependem disso, mas facilita muito as negociações”, ensina.
Foi por causa do espaço para negociar que a jornalista Kiki Marinho, 42, pôde contar uma história bem diferente da de Mylene. Mãe de Renato, 7, com diagnóstico de Transtorno Opositor Desafiador (TOD) associado à paralisia cerebral, Kiki tem um horário de trabalho flexível, o que permite que ela concilie maternidade e trabalho.
“Já tive um emprego com horários mais fixos, mas como as pessoas acompanharam toda a gestação, o parto e o início das descobertas sobre as condições de Renato, conseguia sair tranquilamente para acompanhá-lo quando necessário”, relata. “Hoje, meus chefes também sabem das necessidades do meu filho. Várias vezes precisei me ausentar no meio do trabalho e não tive problemas”, completa.