Uma boa oportunidade de negócio está virando fumaça em Pernambuco. A produção de medicamentos a base de Cannabis sativa, nome científico da popular maconha, cresce em todo o mundo. Israel, Estados Unidos e Canadá avançam em pesquisas e na industrialização. Segundo um estudo da empresa Arcview e BDS Analytcs, somente nos Estados Unidos, o mercado da “marijuana legal”, como é conhecida na América do Norte, vai movimentar US$ 40 bilhões e gerar pelo menos 100 mil empregos até 2021.
Enquanto isso, a Polícia Federal erradicou no ano passado 1,8 milhão de pés de maconha em ações no sertão da Bahia e de Pernambuco. As plantas acabaram queimadas. “Acho um desperdício. Tudo isso poderia virar material de pesquisa ou matéria-prima da indústria farmacêutica.” A opinião polêmica é do PhD em Farmácia José Antônio Alves. O professor titular da UFPE fala com propriedade. Em 1998, quando era diretor presidente do Laboratório Farmacêutico de Pernambuco (Lafepe), Alves teve a ideia de produzir no laboratório do governo de Pernambuco o medicamento Dronabinol, utilizado no tratamento dos efeitos colaterais da quimioterapia aplicada em portadores de câncer e para melhorar o apetite de pacientes com aids.
A ideia era utilizar a planta Cannabis sativa apreendida pela polícia no polígono da maconha e dela extrair o princípio ativo Tetrahidrocanabinol (THC) na produção do remédio. Antonio Alves teve que pedir autorização ao Ministério da Justiça, já que, na época, a maconha estava no rol das substâncias ilícitas e banida em pesquisas. Levou um ano para que o Conselho Nacional de Entorpecentes respondesse. O projeto foi vetado.
BARATO
Uma das justificativas do então presidente do Lafepe indicava que o tratamento feito com remédios similares importados custava entre US$ 10 e US$ 20 por dia, enquanto a terapia com Dronabinol custaria US$ 8 por dia. “Cento e quarenta mil pés adultos de maconha dariam para produzir aproximadamente 40 milhões de cápsulas de 10 mg, considerando um teor médio de 1,0% de THC”, diz um artigo do professor José Alves. “Nesses 20 anos, outros países evoluíram enormemente nessa área, realizando inúmeras pesquisas científicas e estimulando, inclusive, o plantio para fins comerciais. O Brasil deixou de ocupar uma posição de destaque e ainda deixou inúmeros pacientes sem tratamento”, lamenta Alves. Ele aspirava que Pernambuco se convertesse num centro de pesquisas e até exportador dos princípios ativos da maconha.
Para o consultor da área de saúde, e ex-diretor da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), Ivo Buscarevk, o Brasil ainda tem todo o potencial para se transformar num grande produtor e exportador de medicamento a base de maconha por reunir condições climáticas ideais para o cultivo da planta, mas ele reconhece que o processo não é fácil. “Mesmo no Canadá, onde há uma das legislações mais avançadas do mundo, a liberação para o cultivo com destinação industrial se deu por vias judiciais”. O consultor revela que no Canadá o mercado farmacêutico de Cannabis movimentava 128 milhões de dólares canadenses em 2016 (cerca de R$ 330 milhões). Em 2017 esta cifra aumentou para 1,3 bilhão de dólares canadenses ou, em moeda brasileira, R$ 3,4 bilhões. “As pesquisas estão avançando muito nessa área e todos os dias surge uma nova aplicação para a Cannabis medicinal. Já é possível tratar dores crônicas, Alzheimer, e os efeitos colaterais da quimioterapia nos pacientes com câncer”, diz Ivo. Ele admite que o mundo inteiro está regulamentando e acredita que o Brasil deu passos importantes neste sentido.
MACONHA
Em 2015 a agência retirou o canabidiol da lista de medicamentos proibidos. Em 2016 ocorreu a liberação de medicamentos importados por pessoa física. Hoje a lista inclui 11 produtos. O primeiro medicamento importado com venda liberada nas farmácias brasileiras chegou no ano passado. O Mevatyl, indicado para tratamento de esclerose múltipla. Custa R$ 2.800. Ainda em 2017, a agência de regulação incluiu a Cannabis sativa na lista de plantas medicinais. Isso não significa a liberação para uso ou cultivo, apenas abriu o caminho para a chegada da matéria-prima importada. O próximo passo seria a regulamentação e liberação do cultivo no Brasil para uso da Cannabis em pesquisas e para fins comerciais. O processo foi aberto em 2017 e incluía até audiências públicas para discussão do tema. Segundo a assessoria de imprensa da Anvisa, o processo de regulamentação não progrediu e nem tem prazo para a conclusão.
Como ainda não há regulamentação, a saída para quem precisa dos medicamentos a base de Cannabis é recorrer à importação ou à manipulação caseira. No primeiro caso, o preço elevado dos medicamentos impossibilita o acesso ao tratamento por várias famílias. A solução então é a manipulação caseira que, mesmo assim, é difícil porque o cultivo da planta é proibido no Brasil. O ex-estudante de Direito, Cassiano Texeira, não se conformava com essas limitações. Para ajudar um irmão que sofre de epilepsia, há quatro anos ele resolveu fabricar em casa o extrato de Canabidiol. A maconha ele conseguiu, à época, ilegalmente. “O resultado foi tão bom que decidi fazer tudo de forma legal e assim poder ajudar outras pessoas”, diz Cassiano. Hoje ele é um dos diretores da Associação Brasileira de Apoio Cannabis Esperança (Abrace), com sede em João Pessoa, na Paraíba. A instituição é a única do País com autorização da Justiça para cultivar a maconha com fins terapêuticos. “Primeiro procurei a Anvisa, que negou o meu pedido de autorização para produção da maconha medicinal. Então, recorri à Justiça”, diz Cassiano.
Em maio do ano passado, a Justiça Federal da Paraíba autorizou, através de liminar, o cultivo e a manipulação da maconha para fins medicinais inicialmente para 151 pacientes de epilepsia apontados pela associação. Uma segunda liminar, expedida no final do ano passado, liberou a fabricação artesanal feita pela associação para qualquer número de pacientes. “Começamos atendendo 150 pessoas. Hoje, já são mais de 800 de todo o Brasil, e a procura não para de crescer. São 100 novos pedidos em média todo o mês”, diz Cassiano, que vai abrir esta semana uma filial da Abrace em Campina Grande, agreste paraibano, e outra no próximo mês em São Luís, no Maranhão. A associação produz o extrato de CBD e THC utilizado principalmente no controle da epilepsia. O frasco de 60 ml custa entre R$ 150 e R$ 200 e é suficiente para um tratamento de cerca de dois meses. O medicamento só é disponibilizado para quem apresenta receita médica. Cassiano espera, no futuro, fornecer o extrato da maconha para a rede de saúde pública através do SUS.
Para a diretora da Associação de Apoio à Pesquisa a Pacientes da Cannabis Medicinal (Apepi), a advogada Margarete Brito, a grande procura pelos medicamentos feitos na Paraíba só demonstra a necessidade urgente de regulamentação de todas as etapas de produção. “Cerca de 1% a 2% da população brasileira sofre de algum tipo de epilepsia. Estamos falando de milhões de pessoas que poderiam ter uma qualidade de vida melhor se tivessem acesso a tratamentos a base de Cannabis medicinal, que já se comprovou ser eficiente”. Para ela, a indústria não pode ser a única forma de acesso. "Tem que haver possibilidade de termos o artesanal, o cultivo por Associação, só assim teremos um acesso mais democrático", ressalta.
Margarete Brito diz que a regulamentação poderia se dar inclusive por via legislativa, mas ela acredita que o desconhecimento e o preconceito ainda são entraves. “O uso da maconha ainda é um tabu no Brasil. Muita gente acredita que estamos querendo liberar o uso recreativo, mas isso é uma outra discussão. Quando falamos de Cannabis medicinal estamos falando de saúde pública e de vidas”, afirma Margarete. No mês que vem, a Apapi vai promover junto com a Fiocruz, no Rio de Janeiro, um seminário internacional para discutir o uso terapêutico da Cannabis, as formas de acesso, resultados de pesquisas, regulamentação e seu uso na saúde pública.