O semiárido do futuro pode estar nascendo num projeto instalado no Serviço de Tecnologia Alternativa (Serta), uma escola de ensino técnico em Ibimirim, a 339 km do Recife. Lá, numa área de pouco mais de 24 metros quadrados, foi instalada uma unidade do projeto Ecolume que, anualmente, consegue produzir 192 quilos de peixe, 730 ovos de galinha, 816 unidades de vegetais, 200 mudas nativas e 4,8 mil quilowatts-hora (kWh) de energia. E isso ocorre usando a água da chuva acumulada numa cisterna.
No quadrado de 24 metros quadrados somente as aves ficam em contato com o solo, mas à sombra, porque acima do galinheiro estão os canos, nos quais os vegetais são cultivados e, em cima deles, as placas fotovoltaicas. Depois de circular por todo o sistema, o líquido é depositado numa caixa d’água em que são cultivados os peixes. E a matéria orgânica (fezes) dos peixes vai para um minhocário, servindo, posteriormente, de alimento para as aves. “Aqui, não sobra nada. Não há lixo. Os vegetais sem condições de serem consumidos são oferecidos aos animais”, conta o coordenador de Inovação Tecnológica do Serta, Sebastião Alves dos Santos, também professor de agroecologia, biólogo e inventor.
O Ecolume está numa área com características de desertificação: sem cobertura vegetal há mais de cinco décadas. O desmatamento do local ocorreu na década de 1970, quando foi construído o açude Poço da Cruz, vizinho ao Serta. Os conceitos que a escola propaga passam por soluções que usam o sol, o vento, a água acumulada em cisterna e mais uma matéria-prima: o conhecimento. “Para promover o desenvolvimento aqui tem que aprender três coisas: comer a caatinga, plantar água e irrigar com o sol”, resume Sebastião. E continua: “O nosso problema aqui não é falta de chuva, mas como a água é distribuída”. Em média, o semiárido pernambucano recebe entre 500 mm e 600 mm por ano.
Mas o que significa comer a caatinga? É se alimentar e oferecer aos bichos alimentos de plantas nativas ou que se adaptem bem ao semiárido. Ele cita como exemplo o jerimum. Ele pode servir de alimento, sem contar que pode ser consumido muitos meses depois da colheita. “Plantar água é ‘recaatingar’, plantar árvores. Não entendo a cabeça de gestores municipais que não se preocupam com isso. Se em cada casa tivesse uma árvore, seria absorvido mais gás carbônico. Pode se esfriar até 2 graus numa cidade com o replantio”, resume.
Sebastião acrescenta que também existem tecnologias baratas e já conhecidas, como as barragens subterrâneas, que podem guardar a água no melhor lugar para o semiárido: o subsolo. “Aqui, chove mais de baixo para cima do que de cima para baixo”, diz, se referindo a um dos fatores que mais faz o local perder água, a evaporação. “Com o Ecolume se produz alimento o ano inteiro, independente da chuva. É um sistema de gestão da água”, frisa Sebastião. No dia em que a reportagem visitou o local, a temperatura ambiente estava em 39 graus e a do solo (sem a sombra e vegetação) ultrapassava os 60 graus.
“É o primeiro sistema agrovoltaico voltado para a realidade do semiárido”, diz uma das idealizadoras do Ecolume, a pesquisadora Francis Lacerda. O projeto saiu do papel porque venceu uma concorrência do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) que bancou a implantação.
Uma unidade do Ecolume pode render ao pequeno produtor rural cerca de R$ 10 mil por ano com a venda da produção (hortaliças, ovos, mudas de árvores, peixes e energia). Se fossem replicados 1 milhão de Ecolumes, haveria uma geração de riqueza estimada em R$ 10 bilhões anualmente. Para isso, o produtor precisa ter placas fotovoltaicas e cisterna. Nos últimos anos, foram implantadas mais de um milhão de cisternas nas casas de pequenos agricultores do semiárido. “O que falta é uma decisão política para implantar o projeto em larga escala”, conta Francis. A partir do Ecolume foi criada uma rede nacional com mais de 50 pesquisadores e 17 instituições que trocam experiências sobre o semiárido.
Mundo de Sebastião
O local em que o Serta funciona é uma estrutura que fazia parte do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS) implantada para administrar o açude Poço da Cruz, um grande projeto de irrigação que foi minguando. Atualmente, são 132 alunos de 28 municípios e cinco Estados. “Cerca de 80% das vagas são para alunos pernambucanos, porque é o governo de Pernambuco que banca os recursos”, afirma Sebastião. O local parece um oásis – com vários tipos de plantas – incluindo um laboratório de recuperação da caatinga com mais de 60 cactos.
“Cheguei aqui há 15 anos para transformar isso em escola. A lata que pintei a casa transformei em catavento, usando também uma peça de bicicleta e um parafuso velhos”, relembra Sebastião. O invento oxigena a água dos peixes, usando apenas o vento. Um dos laboratórios do Serta se parece com uma oficina mecânica. De lá, saem invenções baratas e que podem facilitar a vida dos pequenos produtores rurais, como um protetor de mão feito com latão (usado no corte dos cactos); um filtro de água que utiliza uma lâmpada fazendo o líquido passar por uma temperatura tão alta que mata todos os microorganismos; telhas pintadas de preto que ficam ao ar livre no sol com garrafas PETs cheias de água. “Tratamos essa água com radiação solar. Com seis horas, são mortos 99,9% dos micróbios com o raio UV1”.
Até um aro usado de bicicleta se transformou num medidor de área em metros percorridos. Todas essas invenções saíram da cabeça de Sebastião e de algumas necessidades que surgem no dia a dia, como ter que proteger a mão ao cortar o cacto, filtrar a água de beber. Ele nasceu no Rio Grande do Norte, mas diz ser pernambucano. “É uma topofilia”, diz. O termo significa o sentimento de pertencimento a um lugar, que passa a fazer parte da sua identidade. E uma parte do semiárido fica mais pródigo com as invenções de Sebastião, que devem estar sendo replicadas pelos mais de mil alunos que já passaram pelo Serta.