Houve um tempo em que Pernambuco duelou contra o Brasil. Os desavisados podem pensar que o futebol espelhou a tradição histórica separatista do Estado, que ao longo dos séculos de colonização portuguesa foi palco de movimentos como Guerra dos Mascates, Conspiração dos Suassunas, Revolução Pernambucana, Confederação do Equador e Revolta Praieira. Nada disso. No ano de 1934, uma seleção brasileira que ainda engatinhava e estava longe da hegemonia que conquistaria nas décadas seguintes desembarcou em Pernambuco para uma série de cinco amistosos contra Náutico, Sport, Santa Cruz e o selecionado local. Venceu quatro partidas, marcou 23 gols, sofreu 14, mas deu adeus ao Recife com uma das cinco únicas derrotas sofridas para clubes em sua história centenária, feito alcançado pelo Santa no confronto derradeiro da excursão.
A visita da seleção ocorria poucos meses após o fiasco tupiniquim na Copa do Mundo. No torneio disputado numa Itália oprimida pelo ditador fascista Benito Mussolini e em meio a uma briga entre cartolas paulistanos e cariocas, o Brasil tombou logo na estreia. A derrota por 3x1 para a Espanha, em 27 de maio, numa competição em formato de mata-mata, significou uma despedida precoce. Resultado que, do outro lado do Atlântico, causou revolta e até tentativas de depredação – sinal da relevância que o esporte já gozava no cotidiano dos brasileiros e da falta de educação de parte da torcida diante de um revés. Os amistosos seguintes eram uma forma de tentar salvar o ano.
O Brasil da época ainda respirava os ares conturbados da Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder. Pernambuco era espelho do retrato nacional. O governador Estácio Coimbra (1926-1930) resultou deposto pela revolta, num combate que deixou 150 mortos. O usineiro e advogado Carlos de Lima Cavalcanti, fiel a Vargas, acabou nomeado interventor federal.
Foi nesse cenário de levantes e incertezas políticas que a seleção brasileira aportou no Recife. Antes, num giro por Salvador, na Bahia, o escrete jogou contra Galícia, Ypiranga, Vitória, Bahia e seleção baiana. A equipe nacional ganhou todas. Anotou 27 gols e sofreu oito. Na estada em terras pernambucanas, contudo, o Brasil não teve vida fácil.
Dos 11 titulares da seleção, oito atuavam no Botafogo, prática comum. Entre os outros três, estava Leônidas da Silva, o Diamante Negro, craque maior de sua geração e reputado como o “inventor da bicicleta”. Fora de Leônidas o único gol brasileiro na última Copa do Mundo. O atacante, até então, tinha média superior a um gol por jogo em todos os clubes pelos quais passou. Do São Cristóvão ao Vasco da Gama, arregimentou idolatria. Encerraria sua passagem pela seleção com 38 gols em 38 partidas, média superior à de Pelé, e um lugar reservado na história do futebol.
OS JOGOS - Era uma quinta-feira de sol, 27 de setembro de 1934, dia de Cosme e Damião. A data tinha respaldo certo naquele Recife longínquo. As casas distribuíam bombons e brinquedos às crianças. O clima de festa imperava e tinha outra razão de existir. O Campo da Avenida Malaquias, na Zona Norte, primeiro estádio do Sport, seria palco de um momento ansiado por 20 anos. As arquibancadas, erguidas de madeira e ferro, comportavam duas mil pessoas sentadas e outras seis mil de pé. De bonde elétrico, o povo chegava para ver a história ser escrita. Pela primeira vez, Pernambuco recebia um jogo da seleção brasileira.
O Leão, primeiro adversário do time da Confederação Brasileira de Desportos (CBD) e comandado pelo técnico Ambrósio Alfredo Gama, chegou a abrir 4x2 sob a inspiração de Marcílio, autor de três gols. Do outro lado, porém, havia a seleção. O empate não tardou a chegar. A vitória não deixou de sair. Leônidas não se furtou a aparecer. O Diamante Negro, preciso e precioso, encerrou o placar por 5x4.
O escrete nacional, treinado por Armindo Nobs Ferreira, voltou a campo somente três dias depois. No caminho, o Santa Cruz. O 3x1 do Brasil sedimentado no placar não contava, com exatidão, a dificuldade da peleja. O técnico reconheceu a aspereza, em entrevista ao Jornal do Commercio no saguão do Palace Hotel, em Boa Viagem, Zona Sul do Recife, onde a delegação estava hospedada: “Embora não nos haja causado surpresa, excedeu, entretanto, a nossa expectativa o grau de adiantamento em que viemos encontrar os desportos no Recife. Pelo que observamos nos dois jogos realizados, Pernambuco possui bons elementos, perfeitos manejadores da pelota”.
As agruras tiraram folga em 4 de outubro daquele ano, data da terceira partida da seleção. Mais Brasil do que nunca, a seleção selou um impiedoso 8x3 contra o Náutico, com três gols de Leônidas. Foi o placar mais largo da passagem brasileira pelo Estado. A goleada empolgou. O embate seguinte, no dia 7, prometia ser o mais duro. Era seleção contra seleção. De um lado, o Brasil. Do outro, Pernambuco. Prevaleceu a lógica, inimiga visceral da zebra. O jogo se desenhou igual até o 3x3, até Leônidas e Armandinho, destaques da CBD, sepultarem as esperanças pernambucanas.
A partida do adeus foi outra vez contra o Santa Cruz, no dia 10. O Brasil tinha pela frente o atual campeão pernambucano, oponente contra quem havia feito menos gols nesse tour. O espetáculo começou antes de a bola rolar: o Campo da Avenida Malaquias registrou o maior público e renda da história do futebol pernambucano até então. Os oito mil pagantes foram brindados com o improvável, parceiro fortuito da bola. O Tricolor do Arruda venceu a seleção por 3x2, com gols de Zezé (2) e Sidinho. Uma surpresa sem medida, que pôs uma fatia do Recife em êxtase. Pela segunda vez em sua história, o Brasil era derrotado por um clube – a primeira havia sido para o Dublin, do Uruguai, em 1918.
O escrete canarinho voltaria outras três vezes ao Recife para jogar contra a seleção pernambucana: vitórias por 2x0 na Ilha do Retiro, em 1º de abril de 1956, e por 6x1 no Arruda, no dia 13 de julho de 1969, e empate por 0x0 também no Arruda, em 13 de maio de 1978. Afora os amistosos, Pernambuco sempre esteve do mesmo lado do Brasil, uma relação umbilical e que seria reforçada nos anos seguintes.