100 anos da seleção

Canarinho virou Cacareco: uma seleção só de pernambucanos

Em 1959, Pernambuco foi escolhido para representar o Brasil no Sul-Americano Extra, no Equador. Apesar da desconfiança da imprensa sulista, a Cacareco conquistou o terceiro lugar. Passagem faz parte do especial sobre o centenário da canarinho

Wagner Sarmento
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Wagner Sarmento
Publicado em 07/04/2014 às 9:43
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Apesar da desconfiança da imprensa sulista, a Cacareco conquistou o terceiro lugar. - FOTO: Foto: Arquivo
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Pernambuco já foi Brasil. Na história centenária da seleção brasileira o ano de 1959 é grafado em letras garrafais no coração dos pernambucanos. O Brasil que um ano antes havia conquistado sua primeira Copa do Mundo. O Brasil alçado, enfim, à condição de potência mundial do futebol sob a magia torta que emanava dos pés de Garrincha e o impossível desfeito em pó e gols por um Pelé de 17 anos, príncipe que haveria de ser rei. O Brasil que delegou à seleção pernambucana a missão de disputar o Sul-Americano Extra, em Guaiaquil, no Equador. Era final de temporada, os campeões mundiais estavam exaustos após um vice-campeonato em outro torneio regional e, para honrar o convite, a Confederação Brasileira de Desportos (CBD) chamou Pernambuco para representar a nação. Canarinho virou Cacareco.

Cacareco foi o apelido inventado pela crônica esportiva sulista para se referir ao selecionado local. Era alcunha carregada de veneno. No dicionário, o termo significa “traste velho” e “coisa de pouco valor”. No campo, a lógica era a mesma. A imprensa especializada paulista e carioca desdenhava da seleção rubro-negra, alvirrubra e tricolor. Gritava aos quatro ventos que o time era formado por jogadores desconhecidos ou com passagens apagadas pelos clubes de São Paulo e Rio de Janeiro. Gaiato por natureza e necessidade, o pernambucano transformou o bullying em arma. Apossou-se do codinome pejorativo. Cacareco com muito orgulho.

Cacareco era, por coincidência, o nome de um rinoceronte criado no zoológico do Rio. O comando da CBD, então, mandou confeccionar uma miniatura do bicho. O animal foi adotado como mascote da seleção de Pernambuco e entregue pelo presidente da CBD, João Havelange, ao presidente da Federação Pernambucana de Desportos (FPD), Rubem Moreira.

O Brasil pernambucano jogaria contra as seis maiores seleções do continente sem qualquer entrosamento nem experiência internacional, sob comando do folclórico Gentil Cardoso, campeão estadual em 1959 com o Santa Cruz. Nada disso espantava. No ônibus que levou a delegação do Hotel Novo Mundo ao Aeroporto Internacional do Galeão, resenha e violão, uma alegria clicada pela imprensa e liderada pelo craque rubro-negro Traçaia. Até mesmo a ligeira refeição no terminal aéreo não escapou das lentes dos fotógrafos.

A aventura, no entanto, ganhou ares dramáticos antes mesmo do início da disputa. A aeronave DC-6 da Panair que levava jogadores, dirigentes e comissão técnica sofreu pane num dos motores. O avião se dirigia para São Paulo, onde Waldemar, Paulo, Goiano e Servílio embarcariam. A maioria dos passageiros dormia. Rubem Moreira saiu da cabine do piloto e anunciou que o DC-6 teria que retornar ao Galeão. Tarimbados, os atletas achavam que se tratava de uma brincadeira, expediente comum entre os boleiros. Era verdade. O pânico se instaurou, mas a aeronave pousou em segurança e decolou apenas na manhã seguinte, em 1º de dezembro de 1959, para colocar de vez Pernambuco na história da seleção brasileira.

Na escala no Aeroporto de Congonhas, o técnico da CBD, Vicente Feola, fez questão de recepcionar os canarinhos de primeira viagem. “Vocês são tão dignos de representarem o Brasil quanto os campeões do mundo”, declarou, com o respeito que a crônica esportiva de seu Estado não tivera. O meia tricolor Moacir, que sofrera pancada no joelho no último treino nos Aflitos, viu a contusão se agravar. Acabou cortado.

Quando botou o esquente amarelo, Pernambuco se tornou Brasil. Na chegada ao Equador, foi de longe a delegação mais festejada. Um assédio que se estendeu à porta do Hotel Majestic, repleto de jornalistas e torcedores ávidos por entrevistas e autógrafos dos craques. Quem estava ali, querendo ou não, era a seleção campeã mundial um ano antes. Havia um simbolismo inevitável. A camisa pesava.

Às vésperas da estreia, outro susto. O goleiro Walter fraturou um dedo da mão direita. Cinco dias fora. Waldemar, o reserva, assumiria a posição. O confronto contra o Paraguai no recém-inaugurado Estádio Modelo Guaiaquil, no dia 5 de dezembro daquele ano, recebeu cerca de 50 mil pessoas. O atacante alvirrubro Paulo, três vezes, todas elas em jogadas de Elias, também do Náutico, fez Pernambuco brilhar no Equador. A vitória brasileira por 3x2, apertada e providencial, enterrava as críticas que ainda pairavam.

O planeta, à época, respirava Guerra Fria. O Equador, por sua vez, vivia período de estabilidade democrática, governado pelo presidente Camilo Ponce Enríquez, mas o acirramento ideológico respingava em Guaiaquil e ameaçava a competição. O ministro de Defesa Nacional, Gustavo Diez Delgado, fez pronunciamento garantindo que o Exército manteria a ordem nas ruas contra o que chamou de ameaças da esquerda.

Antes do segundo jogo, o meia-esquerda Goiano teve um desentendimento com o treinador Gentil Cardoso e foi desligado do elenco. Os demais jogadores fizeram um apelo ao comando técnico e aos dirigentes. Reunião selou a reintegração do atleta, que se desculpou com Gentil.

O adversário da vez era o Uruguai. O mesmo Uruguai que, menos de uma década atrás, invadira nossa casa e roubara nossa alegria. A dor ainda não havia cicatrizado. Reportagens da época revelam a amargura e a rivalidade. Aquele 2x1 improvável, de virada, no Maracanã lotado, nunca cicatrizou. Ferida aberta, foi lá o Brasil tentar a sorte, em 12 de dezembro, no mesmo campo da estreia. O primeiro tempo ficou num empate sem gols, mas o maior volume de jogo uruguaio não tardou a se refletir no placar. O apito final sentenciou um 3x0 difícil de digerir.

A chance da redenção estava no duelo seguinte, uma semana depois, contra o anfitrião Equador. O gol de Carlos Raffo abateu, mas não derrubou. O Brasil foi para cima, virou ainda no primeiro tempo e conseguiu seu segundo triunfo na competição, por 3x1, gols de Paulo, Geraldo José e Zé de Mello. Uma taça simbólica premiou a vitória brasileira. Na última partida do Sul-Americano Extra, contra a Argentina, no dia 22, o time constituído apenas por jogadores pernambucanos não foi páreo para os hermanos, que venceram por 4x1, com três do artilheiro José Sanfilippo.

O Pernambuco vestido de Brasil se despediu do campeonato com o terceiro lugar, honroso diante das limitações e do desentrosamento. Quem debochava reconheceu a luta. Cacareco, a partir dali, ganhava outro significado.

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