100 anos da seleção

O tetracampeonato mundial começou no Recife

Pressionado pela campanha irregular nas Eliminatórias, o Brasil jogou contra a Bolívia no Arruda em 1993 pela sobrevivência. O apoio dos recifenses foi fundamental na arrancada rumo ao tetra. Passagem faz parte do especial sobre o centenário da canarinho

Wagner Sarmento
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Wagner Sarmento
Publicado em 08/04/2014 às 7:42
Foto: Arrquivo
Pressionado pela campanha irregular nas Eliminatórias, o Brasil jogou contra a Bolívia no Arruda em 1993 pela sobrevivência. O apoio dos recifenses foi fundamental na arrancada rumo ao tetra. Passagem faz parte do especial sobre o centenário da canarinho - FOTO: Foto: Arrquivo
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O Brasil que encantou o planeta cambaleava. A invencibilidade de 31 jogos em Eliminatórias havia caído por terra. As decepções em 1982 e 1986, somadas ao fiasco em 1990, multiplicavam a pressão em cima da seleção brasileira. O Brasil completaria 24 anos sem título mundial. Um vazio que angustiava. Uma lacuna que depunha contra a escola que reinventou o futebol. A derrota para a Bolívia em La Paz, por 2x0, precedida de um empate por 0x0 contra o Equador em Guaiaquil, lançou o elenco no meio de um furacão de dúvidas e desconfiança. O Brasil tricampeão do mundo perigava ficar fora da Copa pela primeira vez na história. Mas havia o Recife no meio do caminho.

Esta história de quase-morte e ressurreição, de desalento e volta por cima, começou a ser escrita no dia 25 de julho de 1993. Um ano que tinha tudo para ser esquecido, que começou com eliminação prematura na Copa América, ainda nas quartas de final, para a arquirrival Argentina, nos pênaltis. Um mês depois do adeus, o instável time de Carlos Alberto Parreira entrava no Estádio Hernando Siles diante da Bolívia pelas Eliminatórias. Jogava contra a equipe do cabeludo Marco Etcheverry e contra a altitude de 3.600 metros de La Paz.

Dizem que a seleção esteve em campo, mas aquele conjunto vestido de amarelo não era nem espectro da história canarinho. A Bolívia sufocou. A seleção segurou-se como pôde. Parecia que o Brasil estava do outro lado, vestido de branco e verde. Taffarel tinha tudo para deixar o campo como herói. Mas, no futebol, a distância entre céu e inferno cabe num erro.

Etcheverry arrancou do meio-campo para fazer jus ao apelido de El Diablo. Fez inferno digno de camisa 10 contra o zagueiro Válber, para lá e para cá, até achar a fresta do improvável, o único espaço possível para o chute sem ângulo. Bateu de canhota, cruzado, fraquinho, e a bola por si só não entraria. A dois minutos do fim, Taffarel falhou. O mesmo Taffarel impenetrável por 88 minutos. O mesmo Taffarel que pegou até o pênalti cobrado por Erwin Sánchez. O mesmo Taffarel irrepreensível errou justo na hora em que não podia. Ajoelhado, colocou a bola para dentro do gol. Caía por terra, do alto de La Paz, uma invencibilidade que se julgava eterna.

No afã do empate a qualquer custo, o Brasil foi à frente sem olhar para trás. A Bolívia, um minuto depois, aos 44 do segundo tempo, num toque sutil de trivela de Álvaro Peña, num contra-ataque inevitável, numa reação óbvia diante da ação camicase, fechou o placar por 2x0. O Brasil caiu para quarto lugar, Parreira quase caiu.

No duelo seguinte, a goleada por 5x1 contra o então saco de pancadas Venezuela não aliviou a pressão. O 1x1 contra o Uruguai na casa do adversário desapontou. Nem mesmo a vitória por 2x0 contra o Equador convenceu. Os jogadores brasileiros deixaram o Morumbi sob vaias eloquentes. Havia um clamor pela volta de Telê Santana e, sobretudo, do atacante Romário, que estava brigado com Parreira e só seria reconvocado na partida derradeira, contra o Uruguai, no Maracanã, numa mistura de clamor popular e necessidade.

A Bolívia foi para o jogo de volta contra o Brasil, em 29 de agosto de 1993, certa de que poderia repetir a dose. No embarque, em La Paz, os tradicionais yatiris – espécie de feiticeiros indígenas – estiveram presentes para apoiar os jogadores comandados por Xabier Azkargorta. Apelavam à religião pré-hispânica, que segundo eles “podia mais que a macumba brasileira”.

A seleção canarinho, por outro lado, viajou ao Recife temendo uma hostilidade que se tornara corriqueira noutras cidades. A pressão incomodava. O momento era dos piores. Já no desembarque, porém, a primeira surpresa. Uma recepção calorosa ensinou: a capital pernambucana era diferente. No primeiro treino, a comissão técnica pensou em fechar os portões para evitar inconvenientes. O capitão Ricardo Rocha interveio: “Falei que não podiam fazer aquilo. Mandei abrir. A torcida invadiu o Arruda. Parreira me abraçou, emocionado e agradeceu. Essas coisas mexem com a gente”.

O torcedor pernambucano devolveu à seleção a confiança perdida. Acolheu quando todos execravam. Acreditou quando todos duvidavam. O Brasil iria a campo ciente de que era preciso retribuir o carinho providencial. O jogo valia a honra e a sobrevivência. No vestiário, antes de subir para o gramado do Arruda, um momento desses que ficam na história. A apreensão era indisfarçável. Vestiam a camisa mais respeitada de todas, amarravam as chuteiras com cadarço e coração e, mesmo lá de baixo, escutavam uma torcida ensurdecedora que era só fé.

Ricardo Rocha, pernambucano e capitão, voz e alma, responsabilidade em dobro, sabia que, sem união, o time nada podia. Lembrou-se, então, de um gesto que o marcou na final do Campeonato Pernambucano de 1983, vencido pelo seu Santa Cruz. Chamou o grupo e sugeriu que a equipe entrasse de mãos dadas no gramado. Todos aceitaram a ideia. Nem toda unanimidade é burra. “A entrada de mãos dadas foi algo único. Estava no vestiário pensando em algo para sacudir a gente e o público. Falei para o pessoal que a gente precisava se unir. Todo mundo topou. Esse gesto ficou eternizado”, diz o zagueiro.

E lá foram eles, um a um, de mãos dadas, sob os gritos entusiasmados de um Arruda que nunca esteve tão abarrotado de gente. O Brasil entrou com Taffarel, Jorginho, Ricardo Rocha, Ricardo Gomes e Branco, Mauro Silva, Dunga, Raí e Zinho, Bebeto e Muller, mas os 96.200 presentes, maior público da história do estádio, jogavam junto. Empurravam a seleção como se estivessem dentro de campo.

O relógio marcava 13 minutos do primeiro tempo quando a felicidade engasgada explodiu. Bebeto fez a jogada, bateu de canhota, o goleiro Carlos Trucco deu rebote, e Raí empurrou a bola para dentro. A agonia virou festa. De cabeça, Muller ampliou o marcador aos 19. Uma Bolívia aturdida mal teve tempo de respirar e, três minutos depois, Bebeto bateu de chapa, por cima de Trucco. Uma chuva desavisada lavou a alma brasileira, no momento em que Branco, após escanteio cobrado por Zinho, aos 35, anotou o quarto. Um minuto antes do término da etapa inicial, Ricardo Gomes ainda teve tempo para fazer o quinto, em tiro de canto batido por Bebeto. Metade do jogo bastou para aquele time de amarelo voltar a ser Brasil. Na saída para o intervalo, a expressão denunciava uma alegria esquecida nos porões da história. As arquibancadas pulsavam.

O segundo tempo nem precisava existir. Serviu apenas para Raí roubar a bola, lançar Muller e ver Bebeto, aos 13 minutos, encerrar o massacre canarinho por 6x0. Nem mesmo a expulsão de Dunga por um chute desleal nas costas de Carlos Borja tirou o brilho da goleada brasileira. A seleção entrou pressionada e saiu sob gritos de olé. A seu favor. O apito final do árbitro Oscar Velásquez Alvarenga decretou alívio e redenção. A seleção deixou o Recife, mas o Recife continuou com o Brasil em forma de rito, nas mãos dadas que não se desgrudaram até o tetra. A cada vez que o gesto se repetia, a cidade e seu povo eram lembrados.

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