Vários caminhos levam à violência das torcidas organizadas. Porém, a longa estrada até que os crimes praticados por elas sejam julgados faz com que as infrações se multipliquem. De acordo com o Ministério Público de Pernambuco (MPPE), as organizadas Torcida Jovem, Fanáutico e Inferno Coral foram responsáveis por mais de 1.500 crimes nos últimos 10 anos. Todavia, apenas uma ínfima porcentagem dos autores foi presa, julgada e condenada.
Um dos raros casos em que a Justiça mostrou celeridade nos episódios de violência no futebol foi o do trio responsável por arremessar os dois vasos sanitários da arquibancada do Arruda, que resultaram na morte de Paulo Ricardo Sobral, no dia 2 de maio de 2014. Os responsáveis foram condenados em júri popular a um ano e 4 meses após o crime. A “rapidez” só se deu, principalmente, pela pressão da mídia e da opinião pública. O mesmo ocorreu no caso de Lucas Lyra, baleado em frente aos Aflitos no dia 16 de fevereiro de 2013. Porém, mesmo assim, a decisão de ir a júri popular só veio no dia 17 de fevereiro deste ano e o julgamento ainda não tem data definida para ser realizado.
Na opinião do autor da primeira ação civil pública contra as organizadas, em setembro de 2012, o promotor Ricardo Coelho, que hoje atua na pasta de meio ambiente, é a impunidade que faz com que os crimes se repitam. “Naquela época, o que fiz não foi nada mais do que exigir o que diz o Estatuto do Torcedor, que é uma lei federal e, portanto, devia ser cumprida. Eu não pedi apenas a proibição do acesso das organizadas aos estádios, mas também o cadastramento delas, a instalação de câmeras nos estádios, a proibição de escolta policial para esses grupos em dias de jogos. Uma série de medidas, que ao meu ver, faria com que os agressores fossem devidamente identificados e punidos. Mas o que foi feito? O que falta é vontade política”, afirmou o promotor.
A promotora Selma Carneiro, do Juizado Especial do Torcedor do Estado de Pernambuco (Jetep), autora da segunda ação contra as organizadas em março de 2014, com o promotor José Bispo, que pediu a suspensão das organizadas, disse que ainda aguarda a decisão judicial final do processo. “Se a Justiça nos der o respaldo de acabar com essas torcidas, vamos ter um precedente jurídico para que elas não se formem mais e deixem as famílias comparecer aos estádios. Então, se elas forem extintas e voltarem a criar novas, o Ministério Público cairá em cima”, afirmou Selma.
O juiz Edvaldo José Palmeira, da 5ª Vara da Fazenda Pública do Recife, que decidiu em caráter liminar no dia 18 de março de 2014 proibir o acesso das organizadas aos estádios, ainda não deu o parecer final sobre as duas ações movidas pelo MPPE. Cabe a ele resolver pela absolvição, extinção ou suspensão por um ano das organizadas (neste último caso, elas poderiam voltar aos jogos em seguida porque o prazo já foi cumprido). Apesar de já ter passado mais de dois anos, Edvaldo frisou ainda não ter prazo para dar a sentença. “Um juiz não tem só um processo para examinar, eu mesmo tenho 4.400. E todo dia aparecem novos pedidos de urgência que eu tenho que dar preferência. Mas eu diria que agora está mais perto do que longe. Ainda vamos analisar melhor os pedidos. Se acharmos que não é preciso mais provas ou escutar mais ninguém, vamos dar o nosso parecer”, disse o juiz.
No dia 11 de março deste ano, a pedido do Sport, Edvaldo José Palmeira determinou a proibição da Torcida Jovem de frequentar qualquer evento do clube no Estado e até no exterior. Porém, o próprio magistrado mais de uma vez já se posicionou dizendo que a pena mais rígida que poderia impor – a extinção dos grupos – não resolveria o problema. “Extinguir as organizadas não iria acabar com a violência. Isso é uma questão de política de segurança pública. É preciso que todos os envolvidos se planejem para adotar medidas repressivas e preventivas”, finalizou o juiz.
MUITO GASTO, POUCO RESULTADO
Viagem à Inglaterra, software de R$ 900 mil, megaoperações policiais, dezenas de reuniões feitas e documentos assinados. Gastos enormes, quase nenhum avanço. Ao longo dos anos, o governo do Estado e as instituições ligadas ao futebol anunciaram, sempre com grande pompa, inúmeras medidas que custaram muito dinheiro aos cofres públicos e, na proporção inversa, tiveram modestos e acanhados resultados.
Em 2008, o já falecido e então presidente da Federação Pernambucana de Futebol (FPF), Carlos Alberto de Oliveira, organizou uma comitiva com 30 integrantes da entidade, do Jetep e do Ministério da Justiça que foi à Inglaterra ver na prática como o país combateu os temidos hooligans. O grupo visitou estádios, unidades de polícia e órgãos públicos. Até hoje, nada do que foi dispendiosamente vivenciado na Europa chegou a ser aplicado. “Nada foi para frente”, admitiu o atual mandatário da FPF, Evandro Carvalho.
Cinco anos depois, em 2013, veio uma nova pirotécnica ação: a adoção de um software criado especialmente para monitorar as organizadas através das redes sociais. Orçado em R$ 900 mil, ele prometia realizar um megacruzamento de dados que ajudaria a mapear e prevenir focos de violência no Estado, levando em conta que vários confrontos são “agendados” pela internet. A plataforma foi anunciada como a primeira utilizada por uma federação no País. Nunca chegou a ser usada. Nunca saiu do papel.
Em outubro do ano passado, foi deflagrada a Operação Arquibancada, em uma ação conjunta da Polícia, Justiça e MPPE, como a “grande resposta” do poder público contra as organizadas. Na ocasião, houve a prisão de 12 integrantes dos grupos. Todos foram soltos 10 dias depois, quando se cumpriu o prazo da prisão temporária. “Me sinto um otário! Tenho um trabalho da p... para nada. É como se estivesse enxugando gelo”, desabafou, na época, o delegado Paulo Moraes, que estava à frente das investigações.
Enquanto isso o efetivo policial nos clássicos caiu quase pela metade em três anos e, mesmo assim, o atual custo médio por jogo, só de horas extras dos policiais, é de cerca de R$ 60 mil (ver quadros abaixo). Até foi criado o Grupo de Trabalho de Combate à Violência no Futebol, com a participação de mais de 15 instituições, sob a coordenação do vice-governador Raul Henry, com reuniões regulares, mas não resolveu o problema. Vários Termos de Ajustamento de Conduta foram assinados envolvendo clubes, MPPE e Superior Tribunal de Justiça Desportiva e pouco se avançou.
LONGE DOS ESTÁDIOS COMO PUNIÇÃO
O Juizado do Torcedor de Pernambuco (Jetep) foi criado em 2006 para combater a violência nos estádios. Em 10 anos, esteve presente em mais de 890 jogos e instaurou 1.424 processos criminais contra 2.173 torcedores. Números que dão uma dimensão da quantidade de delitos que ainda são cometidos em dias de jogos no Estado (ver quadros acima e abaixo). Nos últimos três anos, 1.040 pessoas já foram punidas com o afastamento dos estádios. Mas o que acontece com elas?
A equipe de reportagem do JC acompanhou um dia de jogo no Recife ao lado de torcedores condenados pelo juizado. Na noite chuvosa dia 6 de abril deste ano, uma quarta-feira, enquanto a grande massa da torcida se dirigia no sentido do Arruda, uma pequena parte tomava rumo inverso com destino à Academia de Polícia Civil, na Boa Vista. Momentos antes da partida entre Santa Cruz e Rio Branco-ES, pela Copa do Brasil, o grupo de torcedores começa a se apresentar. Pensamento no estádio, corpo numa sala da academia.
Os torcedores foram inseridos no programa Futebol Cidadão, criado pelo Jetep em 2009. Todo dia de jogo na capital pernambucana eles são obrigados a comparecer em local definido uma hora antes da partida e permanecer até uma hora depois. A punição varia de 3 meses a 3 anos, dependendo da gravidade do crime. Eles assistem a palestras, vídeos educativos e filmes, seguidos de debates. Na noite em questão foi exibido o filme Central do Brasil para uma “plateia” de seis torcedores.
“A iniciativa foi inspirada em um projeto da Inglaterra. Como eles são obrigados pelo juiz a comparecer aqui, passamos informações sobre leis, saúde, drogas e mercado de trabalho. Sabemos que é uma punição para eles, mas aí procuramos trabalhar a ressocialização. Fazer com que mudem sua conduta violenta e passem a ser multiplicadores de uma cultura de paz dentro das próprias torcidas”, explicou a coordenadora do programa Deolinda Brandão. De acordo com ela, os resultados são bem positivos. “A reincidência é mínima e se cria uma interação entre as torcidas rivais. Eles chegam um pouco resistentes, sem querer sentar junto, mas terminam fazendo amizade e até carona dão ao outro”, garantiu Deolinda.
Um integrante da Fanáutico, que pediu para não ter o nome divulgado, contou que foi detido depois de uma briga no Arruda. “Vir pra cá dificulta a vida, às vezes a gente vai fazer uma coisa e deixa de fazer. Até que são legais as palestras daqui. Mas queria mesmo era voltar a ir pra jogo. É o meu lazer”, disse o torcedor. Quando perguntado o que faria se, quando voltar aos estádios, presenciasse uma briga, ele respondeu: “Aí depende...”.