Carnaval Carioca

Presidente da Guiné Equatorial compra samba enredo da Beija-Flor por R$ 10 milhões

Apesar das críticas, o fato não representa infração às regras carnavalescas

Mariana Mesquita
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Mariana Mesquita
Publicado em 15/02/2015 às 0:14
Carl de Souza/AFP
Apesar das críticas, o fato não representa infração às regras carnavalescas - FOTO: Carl de Souza/AFP
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Ditador há 35 anos, descendente de canibais e deus autoproclamado, com poderes de vida e morte sobre seus súditos, um dos mais cruéis governantes da atualidade foi transformado em “griô” (homem sábio) por uma das mais importantes escolas de samba do Rio de Janeiro. Por R$ 10 milhões, a maior quantia já oferecida por um enredo, a Beija-Flor de Nilópolis (RJ) vai exaltar as belezas da África e de um pequeno país da parte ocidental daquele continente, a Guiné Equatorial. 

A miserável nação governada por Teodoro Obiang Nguema Mbasogo, de 72 anos, poderia se beneficiar enormemente caso esse dinheiro fosse aplicado dentro de suas fronteiras, já que menos da metade de sua população tem acesso a água potável e os gastos com saúde e educação representam apenas 3% de seu produto interno bruto (PIB). Apesar disso, o ditador resolveu patrocinar o desfile, coroando um namoro antigo: junto com seu filho Teodoro Obiang Mangue, mais conhecido como Teodorin, ele frequenta discretamente o carnaval carioca há pelo menos uma década. 

A notícia causou indignação entre os defensores dos direitos humanos, mas não representa infração às regras da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa), que organiza o desfile. A juíza Denise Frossard, que em 1993 condenou a cúpula do jogo do bicho (principal patrocinador dos desfiles), disse ao jornal O Globo que não se sentia surpresa com o fato e classificou a verba como “dinheiro sujo”. 

Estima-se que, atualmente, seja necessário investir pelo menos R$ 5 milhões para uma escola ter chance de vencer a disputa. O líder africano ofereceu o dobro desse valor. Para ele, trata-se de uma migalha, já possui uma fortuna de mais de meio bilhão de dólares em diversos bancos estrangeiros. 

Teodorin, filho e vice-presidente, é considerado foragido na França, após ter sido condenado por desvio de recursos públicos e lavagem de dinheiro. Já Teodoro-pai é acusado pela organização Human Rights Watch por irregularidades eleitorais e violações dos direitos humanos. Pai e filho, porém, circulam pelo Rio de Janeiro com desenvoltura, às vezes se hospedando num luxuoso apartamento próprio em Ipanema, e em outros ocupando a suíte mais cara do hotel Copacabana Palace. 

No samba enredo, embora se diga que o ditador interferiu em alguns versos da música, a Beija-Flor preferiu elogiar as lendas e belezas da África, deixando de lado o controverso governo de Teodoro. Integrantes da escola visitaram o país por duas vezes, trazendo esculturas, tecidos e referências fotográficas. Uma comissão vai desfilar e cerca de 40 autoridades vão apreciar o espetáculo, nos camarotes. Ainda não se sabe se o presidente africano vai assistir ao resultado de seu capricho.

Beija-flor tenta contornar denúncias

Após a celeuma sobre o ditador da Guiné Equatorial ter alcançado a imprensa carioca, destacando-se uma série de matérias publicadas pelo jornal O Globo, a escola de samba Beija-Flor afirmou ter recebido apenas “apoio cultural e artístico” de Teodoro Obiang Nguema Mbasogo. 

A Beija-Flor não confirma se houve financiamento. O custo para uma escola fazer um bom desfile é calculado em pelo menos R$ 5 milhões

A reportagem do JC entrou em contato com a assessoria de comunicação da Beija-Flor, que limitou-se a reencaminhar uma nota oficial distribuída aos jornais do Rio, sem disponibilizar nenhuma fonte direta para falar sobre o assunto.

A nota afirma que “o tema tem viés estritamente cultural e não aborda o formato de governo do país” e que o samba enredo Um griô conta a história: um olhar sobre a África e o despontar da Guiné Equatorial - Caminhemos sobre a trilha de nossa felicidade busca “enaltecer a arte e a força” de seu povo. “A Guiné Equatorial disponibilizou todo o aparato histórico para que a comissão de carnaval da agremiação pudesse pesquisar e ter acesso a diversos aspectos da cultura local”, detalha a assessoria.

Sem deixar claro se o investimento pecuniário de R$ 10 milhões foi efetivamente realizado, o texto desmente que o ditador tenha influenciado o samba enredo. “Negamos que a letra do samba tenha sido alterada por um pedido de qualquer dirigente da Guiné Equatorial”, destaca a nota. 

Segundo O Globo, o embaixador da Guiné Equatorial no Brasil, Benigno-Pedro Matute Tang, vai desfilar no último carro alegórico da escola, e artistas das diversas etnias que compõem o país estão há várias semanas ensaiando danças típicas com os integrantes da Beija-Flor. Cogita-se que Teodorin também venha a participar do desfile, na segunda (16). Após a apresentação, a comitiva vai ocupar dois andares de um hotel de luxo.

Embora o patrocínio não signifique obrigatoriamente um tributo ao ditador africano, as acusações mancham a imagem da escola e suscitam questionamentos sobre as origens das verbas que possibilitam os desfiles - tradicionalmente ligadas, infelizmente, a atividades ilícitas.

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