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Relatos de abuso sexual se multiplicam nas redes sociais

Campanha #primeiroassedio, que traz histórias espontâneas de mulheres abusadas, vai ser transformada em livro

Fabiana Moraes
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Fabiana Moraes
Publicado em 29/10/2015 às 13:44
Foto: Chico Porto/JC Imagem
Campanha #primeiroassedio, que traz histórias espontâneas de mulheres abusadas, vai ser transformada em livro - FOTO: Foto: Chico Porto/JC Imagem
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Se as redes sociais são comumente relacionadas à prática do egocentrismo, das discussões polarizadas e da reflexão rasa, é verdade que elas também conseguem promover ações de necessário e potente impacto político e social. O mais recente exemplo é a campanha #primeiroassedio, iniciada primeiramente no Twitter após a aparição da menina Valentina, 12 anos, no programa Masterchef Júnior, gerar comentários como “vou ali bater uma” ou “Valentina na Playboy.” Depois, a campanha foi parar no Facebook, rede social utilizada por 83 milhões de brasileiros e brasileiras. Em ambas as redes, milhares de mulheres – alguns homens também – contam suas primeiras lembranças de violência sexual usando a hashtag. O resultado indica algo assombroso – e conhecido: 100% delas já sofreram assédio sexual, a maioria ainda crianças.

A campanha foi detonada pelo projeto Think Olga (https://thinkolga.com), criado pela jornalista Juliana de Faria. No último domingo, 25, a hashtag havia sido replicada mais de 82 mil vezes. Uma análise de 3.111 histórias compartilhadas no Twitter informa que a idade média do primeiro assédio é de 9,7 anos – muito embora uma quantidade assombrosa de relatos tragam lembranças de meninas molestadas aos 5, 6, 7 anos. Entre as palavras mais repetidas nesses relatos virtuais estão: casa, pai, homem, escola, bunda, tio, mãe, pênis, ônibus, vizinho, masturbando, escola, calcinha, corri, tentou.

O vídeo da YouTuber Jout Jout sobre o tema, postado há três dias, tinha ontem mais de 500 mil visualizações. O governo federal e a Unicef, em suas redes sociais, também aderiram à campanha.Professora adjunta do Instituto de Letras da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), a escritora Giovanna Dealtry está organizando um livro digital reunindo diversas histórias. A publicação está prevista para março de 2016). “O que está claro é que a maioria das mulheres achava que o assédio era algo que acontecia só com elas. Que elas, por algum motivo, eram o pivô do ataque e não a vítima. O que essa campanha fez foi abrir essa porta, esse discurso das mulheres - na verdade, das meninas que elas foram.”



Autora da tese Como morre uma mulher? Configurações da violência letal contra as mulheres em Pernambuco (menção honrosa do Prêmio Capes 2015), a socióloga Ana Paula Portella viu a campanha primeiramente com receio por conta do preconceito quanto às formas de exposição nas redes sociais. Mudou de ideia ao acompanhar os relatos. “É uma declaração pública poderosíssima das próprias mulheres sobre o que achamos da violência, do assédio e dos abusos. Quem sofreu afirma publicamente que não irá mais passar por isso calada e assume o compromisso também público de cuidar de todas as meninas e de educar os meninos para que não se tornem abusadores.”

Ana Paula ainda vê no #primeiroassedio a sinalização da emergência de um novo fazer político, diferente do que foi praticado até agora e que pode renovar a própria luta feminista. “A reação da sociedade, da imprensa, de algumas instituições e pessoas públicas parecem reforçar essa hipótese, embora não possamos perder de vista que Facebook e Twitter não representam o mundo e há universos inteiros de experiências que estão fora dessa campanha, muitas delas, imagino, bem piores do que as relatadas aqui.”

Ela tem razão. Enquanto os ataques a Valentina ganharam necessária e importante voz e posição da sociedade, a exploração sexual de meninas como as da comunidade quilombola Kalunga (em Goiás), escravizadas por políticos e donos de grandes nacos de terra na região não teve repercussão nacional (os casos foram ao ar em abril através de uma reportagem da TV Record). São meninas entre 6 e 14 anos, cujos relatos foram ouvidos pela Polícia Civil local, que, por sua vez, comunicou as histórias terríveis para a Secretaria de Políticas da Igualdade Racial da Presidência da República.

O número devastador de relatos de assédios sofridos por meninas e exposto a partir da hashtag ainda está relacionado aos movimentos contra a aprovação, pela Comissão de Constituição e Justiça (Câmara dos Depurados), da PL 5069/2013. Ela torna crime, e não mais contravenção penal, o anúncio ou uso de meios, substância, processo ou objetos abortivos. A PL ainda obriga um exame de corpo de delito na mulher para que o SUS (Sistema Único de Saúde) realize o aborto em casos de estupro. Ontem, aconteceram manifestações contra a aprovação em dezenas de cidades do País (aqui, o encontro aconteceu na Praça do Derby). De acordo com dados do Ministério da Saúde, o Sistema Único de Saúde recebeu em seus hospitais e clínicas uma média duas mulheres por hora com sinais de violência sexual em 2012.

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