O mito da “democracia racial” brasileira vem sendo abalado nas redes sociais, de forma continuada e lamentável. Casos de racismo explícito, ao longo do último mês, atingiram a atriz Taís Araújo, o jogador de futebol Michel Bastos e a candidata a miss pelo Estado de Goiás, Tainara Santos. Antes deles, a jornalista e “garota do tempo” da TV Globo, Maria Júlia Coutinho, e a gestora ambiental pernambucana Dandara Marques também tinham sido alvo do mesmo tipo de ofensa. E em vez de se calarem, todas as vítimas escolheram denunciar o agressor.
“O fenômeno das redes sociais mostra a extensão do racismo no Brasil”, confirma a promotora Helena Capela, que é integrante do GT Racismo, grupo do Ministério Público de Pernambuco (MPPE) que presta apoio às vítimas e à polícia civil, responsável pela investigação dos crimes de racismo de forma geral. Os dados assustam: embora a Secretaria Estadual de Defesa Social não tenha dados específicos sobre a internet, computou 1.391 casos de injúria racial desde janeiro de 2013. Mas, para Helena, o racismo não aumentou - ele sempre existiu. “A diferença é que na internet as pessoas se sentem ‘protegidas’ e escrevem sem pensar. Alguns casos tomam proporções muito maiores do que o criminoso e a vítima poderiam imaginar”, explica a promotora, que acredita que a impunidade e a lentidão da Justiça influenciam negativamente o processo.
“Hoje a sociedade se sente mais livre para manifestar o racismo publicamente”, concorda Vera Baroni, yabassé (cargo feminino do Candomblé) e ativista dos Direitos Humanos. “O fato de muitos negros ocuparem posições de visibilidade nos meios sociais e na mídia incomoda, porque quebra os privilégios dos racistas, que se acreditam superiores por serem brancos e agem de forma inaceitável contra outras pessoas com base apenas no fato de terem mais melanina na pele”, afirma Vera.
O meia Michel Bastos foi chamado de “macaco negro safado”, após ter mandado a torcida do São Paulo “calar a boca” depois de ter feito o último gol na vitória do time sobre o Sport, no último sábado. Já Taís, Maria Júlia, Tainara e Dandara foram vítimas também de machismo. “Quando se trata de uma mulher negra, a primeira coisa a ser criticada é o cabelo, que é um elemento de destaque da feminilidade. Por muito tempo, o cabelo crespo foi encarado como ruim, sujo, fedorento. E quando uma mulher negra se destaca por qualquer razão, mas ainda mais por sua beleza, ela é atacada porque esses pressupostos são abalados”, analisa Vera Baroni. “O cabelo é algo que nos dá personalidade. Quando um negro usa e ousa assumir sua identidade, isso choca algumas pessoas. Assumir um padrão de beleza que vai contra o que a mídia impõe é revolucionário. Cabelo é política”, reforça Dandara Marques. Ao expor orgulhosamente sua cabeleira na internet, ela foi atacada por um desconhecido de São Paulo. “Me dê uma caixa de fósforos que faço progressiva nessa infeliz”, disse ele, entre outras ofensas.
CASOS AUMENTAM A CADA ANO
Mais de 2.165 episódios de racismo foram denunciados, desde 2011, à ouvidoria do Ministério da Igualdade Racial, através do fone (61) 2025-7001 ou do e-mail ouvidoria@seppir.gov.br. O número cresce a cada ano. Para o secretário especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Ronaldo Barros, é importantíssimo que os casos sejam denunciados e investigados.
Em Pernambuco, os boletins de ocorrência contra atos racistas, em geral, podem ser registrados em qualquer delegacia ou, se forem crimes virtuais, na Delegacia de Repressão aos Crimes Cibernéticos de Pernambuco, no bairro da Boa Vista. Paralelamente, o MPPE oferece o apoio do GT Racismo, cujo fone é o 31827000, e de uma central de denúncias, que atende através do fone 0800 281 9455.
A promotora Helena Capela, do GT Racismo do MPPE, lamenta o fato de que a maioria dos crimes de racismo seja classificada pelos juízes como simples injúria racial, delito que tem uma pena menor. “Nós entendemos que este tipo de ofensa repercute em todo um grupo e afeta a sociedade. Ao desqualificar alguém por sua cor, está se atingindo os direitos básicos de cidadania daquela pessoa”, afirma.
“Ao mesmo tempo que a internet aumenta o racismo, ela nos dá condições de combatê-lo”, analisa a pernambucana Dandara Marques. Vítima de preconceito, ela não imaginava que seu caso fosse ganhar repercussão nacional. “Foi surpreendente e muito positivo receber dezenas de mensagens de apoio de desconhecidos que se identificavam comigo. Isso me deu forças para lutar, pois vejo que estou brigando não apenas por mim, mas por muitas outras pessoas que estão sendo representadas por meio de minha atitude”, resume.