Com espingarda no ombro e desolação, Tatji Arara caminha entre os troncos de árvores à margem da floresta desfigurada pela ação de madeireiros ilegais no estado do Pará, no coração de uma Amazônia mergulhada em um conflito por terras. "Estou aqui desde criança e nunca vi coisa igual. São novas árvores cortadas todo o dia", lamenta o cacique indígena de 41 anos, que garante que o desmatamento aumentou desde a chegada ao poder, em janeiro, do presidente Jair Bolsonaro.
Segundo o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon), a Amazônia Legal perdeu 108km² de florestas, com o desmatamento aumentando 54% em janeiro de 2019 - o primeiro mês do mandato de Jair Bolsonaro - em relação a janeiro de 2018. O estado do Pará concentra sozinho 37% das áreas devastadas.
O presidente chegou a declarar, em alto e bom som, durante sua campanha eleitoral que não cederia "um centímetro" sequer na demarcação de terras reservadas aos povos nativos.
A terra indígena Arara, onde vivem cerca de 300 indígenas em uma área equivalente a 264.000 campos de futebol, foi demarcada e homologada pelo governo em 1991. "Bolsonaro botou muita minhoca na cabeça do povo. Muitos dizem que, agora que ele ganhou, vai tomar a terra dos indígenas, mas não vamos deixar", diz Tatji Arara, vestindo bermuda e uma camiseta do Flamengo. "Se (as extrações ilegais de madeira) continuarem, nossos guerreiros dizem que podem pegar seus arcos, suas flechas, e pessoas podem morrer", alerta.
Em uma carta enviada em fevereiro ao Ministério Público Federal, os Arara afirmaram que os mais velhos da tribo estudam a possibilidade "de fazer justiça com as próprias mãos", considerando até mesmo um ritual ancestral de fabricação de um instrumento de sopro "com o crânio dos invasores".
Milhares de indígenas participam nesta quarta-feira e até sexta em Brasília da marcha anual em defesa de seus direitos, que este ano será centrada na denúncia das políticas de Bolsonaro.
"Burro"
A terra indígena Arara é localizada na região de Altamira, o maior município brasileiro em termos de superfície, maior do que Portugal e com cerca de 110.000 habitantes. As comunidades indígenas locais já foram severamente afetadas pelo projeto faraônico de Belo Monte, uma usina hidrelétrica que deve ser concluída até o final do ano, como a terceira maior barragem do mundo. Dezenas de pessoas tiveram de ser deslocadas, e o ecossistema local foi fortemente afetado.
Foi também em Altamira que o regime militar inaugurou em 1970 a primeira parte da Transamazônica. Inacabada, essa estrada que supostamente deveria cruzar o "pulmão do planeta" de lado a lado deixou uma cicatriz de mais de 4 mil quilômetros pela Amazônia.
A placa comemorativa da inauguração do projeto foi instalada ao lado de um verdadeiro monumento ao desmatamento: o toco de uma enorme castanheira sacrificada, popularmente chamada de 'pau do presidente', em referência ao presidente Emílio Garrastazu Médici que compareceu à inauguração. Esta árvore, uma das maiores da floresta amazônica, produz castanhas, cuja colheita é uma das principais fontes de renda de Tatji Arara.
Quando o cacique vê um galão de 200 litros de óleo diesel deixado no meio de uma clareira, seu sangue sobe à cabeça: ele dispara um tiro, e o combustível se espalha no chão. Cerca de 500 metros adiante, aponta para um caminhão azul destinado ao transporte de madeira, meio calcinado, incendiado em fevereiro por um grupo de cerca de 60 indígenas.
Nas proximidades da Transamazônica, que neste nível não é pavimentada e se transforma em uma estrada de terra vermelha, os traficantes de madeira avançaram floresta adentro por vários quilômetros.
Eles usam enormes máquinas para devastar toda a vegetação em seu caminho e não se apressam em retirar a madeira, muitas vezes deixando os troncos pré-cortados para buscá-los outro dia. "Quando pegamos eles em flagrante, falam que essa terra não tem dono, que índio é burro, não sabe nada, porque eles querem grandes terras e não tem plantio de soja", diz Tatji Arara.
"Escalada das tensões"
No Brasil, as 566 terras indígenas demarcadas pelo governo representam mais de 13% do território nacional. O direito dos nativos à terra foi reconhecido pela Constituição de 1988. Por lei, é proibido praticar qualquer atividade que ameace o modo de vida tradicional dessas populações, sobretudo, a mineração, ou a extração de madeira.
No início de março, durante um encontro com grandes empresários do setor de mineração no Canadá, o ministro das Minas e Energia, Bento Albuquerque, deu a entender, porém, que o governo poderia acabar com essas restrições. Segundo Albuquerque, elas "favorecem as atividades ilegais".
"Estamos assistindo a uma escalada das tensões. Muitas vezes recebemos reclamação da Polícia Federal de que eles não têm estrutura suficientes para fazer essas fiscalizações, por causa da falta de pessoal. (...) Verificamos a ausência do poder público nesses locais e a consequência disso é justamente que os indígenas acabam agindo como poder público", condena o procurador do Ministério Público do Pará Adriano Augusto Lanna de Oliveira, que teme um banho de sangue.
"Não é desejável que os índios atuem como polícia, ou órgão ambiental (...) porque muitas vezes esses confrontos acabam na dizimação dos povos indígenas", afirma o também procurador de Altamira Paulo Henrique Cardoso.
Os conflitos por terra nessa região já deixaram várias vítimas entre os militantes dos direitos humanos, como Dorothy Stang, uma missionária americana assassinada em 2005, aos 73 anos.
"Sangue e lágrimas"
"Altamira é uma cidade alagada de lágrimas e de sangue", declara Antonia Melo, coordenadora do coletivo de associações Xingu Vivo para Sempre. "Infelizmente, tudo que já estava ruim, com o projeto de Belo Monte, trazendo inúmeros impactos irreversíveis, está ficando pior", lamenta essa mulher de 69 anos, que guarda, em seu escritório, fotos de Dorothy Stang e de outros militantes mortos.
"Bolsonaro se elegeu incitando ódio e violência (...) Agora, com Bolsonaro, grileiros, madeireiros e fazendeiros estão mostrando seu poder", denunciou a ativista. Em 12 de março, o ministro da Secretaria de governo, Carlos Alberto Santo Cruz, foi a Altamira se reunir com líderes indígenas. Ele prometeu que pediria em Brasília reforços à Polícia Federal e aos órgãos ambientais para lutar contra o desmatamento.
Entrevistado pela AFP, ele negou categoricamente que o discurso de Bolsonaro tenha estimulado as incursões em terras indígenas.
"O discurso do presidente Bolsonaro, o tempo todo, foi de respeito à lei, respeito aos valores tradicionais brasileiros, da nossa população. A interpretação disso como liberdade para fazer coisa errada é uma interpretação criminosa, absurda, de gente interessada em fazer coisa errada, com uma interpretação confusa. Isso é um absurdo", frisou.
"A invasão de qualquer área, seja ela indígena ou não, é um ato criminoso. Isso não pode ser tolerado, é caso de polícia", completou Cruz.
Surara Parakana, o cacique que se reuniu com o ministro em Altamira com o rosto coberto das tradicionais pinturas na cor preta, mantém-se cético e reivindica medidas concretas. "O governo precisa agir, porque esse oxigênio não serve só para nós, indígenas, serve para o mundo inteiro", clamou.