A escola pública inaugurada em 22 de junho de 2016 na Penitenciária Feminina de Abreu e Lima, no Grande Recife, poderia ter o nome da escritora carioca Cecília Meireles ou da poeta de Goiás Cora Coralina. Mas entre as três opções colocadas para as reeducandas quem venceu a consulta, em votação, foi Irmã Dulce da Bahia, a freira que dedicou a vida a cuidar dos pobres.
Instalada nas dependências da colônia penal, unidade vinculada à Secretaria Executiva de Ressocialização (Seres), a Escola Estadual Irmã Dulce integra o programa de Educação de Jovens e Adultos (EJA), com as fases 1 a 4 do ensino fundamental e os três módulos do ensino médio. É lá que estudam 233 mulheres julgadas, condenadas e privadas da liberdade pelos crimes cometidos.
“Irmã Dulce lutava pelos necessitados e pelos direitos humanos, a gente se identifica com o trabalho que ela fazia”, resume Janaína Maria do Rego, 31 anos, detida há dois anos e dois meses. Ela apresentou em sala de aula com quatro reeducandas, em setembro de 2019, projeto sobre a vida e a obra da freira chamada de o Anjo Bom da Bahia e canonizada neste domingo, 13 de outubro.
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A apresentação do Trabalho de Conclusão do Fundamental (TCF) corresponde ao encerramento de uma pesquisa iniciada em abril. Auxiliadas por gestores e professores, as reeducandas levantaram a história de vida e as ações de caridade e assistência social desenvolvidas pela religiosa. “Como elas não podem ter acesso a computador, fizemos a pesquisa a partir das demandas delas e imprimimos os textos”, informa Solange Lasalvia, gestora-adjunta da Escola Estadual Irmã Dulce.
“Jamais serei igual a ela, porque ela é uma santa, mas eu me senti muito feliz em fazer essa homenagem a Irmã Dulce, ela estava em mim naquele momento em que eu estava representando”, declara Solange Gomes de Souza Fernandes, 57, ao recordar a encenação do dia 24 de setembro. Reclusa há três anos, Solange destaca em Irmã Dulce o amor ao próximo sem preconceitos e distinções.
A primeira santa brasileira, na avaliação de Solange, é um exemplo de vida. “Podemos não ser iguais na aparência, mas Deus nos fez todos iguais e não quer ninguém humilhado. Irmã Dulce não tinha diferença com rico, pobre, negro e branco, era uma pessoa caridosa em tudo, com as pessoas da rua que não tinham o que comer e com os doentes. Fiquei muito honrada em participar desse trabalho”, ressalta.
Além da pesquisa, as reeducandas cortaram e costuraram as vestimentas da apresentação – o véu preto com detalhe branco e a gola do hábito de feira num tom claro de creme – e fabricaram chaveiros com um pequeno terço de contas azul e branca. A confecção do chaveiro é o resultado prático do projeto, uma arte que pode ajudá-las a conseguir renda quando saírem da penitenciária.
“Essa é uma ação coletiva, mobiliza a escola toda, homem, mulher, novatos. Um dos professores tocou violão durante a apresentação. Aprendemos a fazer o nó franciscano do terço para ensinar a elas”, destacam Solange Lasalvia e a professora Edjane Maria Cosmo, que coordenaram o TCF com os docentes Hans Dorneles Batinga de Oliveira e Renée de Lima Santos.
“Foi um privilégio fazer o papel de Irmã Dulce na apresentação”, afirma Maria de Fátima Feliciana dos Santos, 54, detida há quatro anos na penitenciária. “Em 1988 tive o prazer de ver Irmã Dulce andando na rua, na Baixa dos Sapateiros (famoso centro comercial de Salvador). Eu estava lá com meu companheiro, abrindo letreiros, ela já estava doente e cansada. Vi como era amada pelas pessoas e vi o amor que ela transmitia”, relata a reeducanda.
A pesquisa revelou para Maria de Fátima a obra construída por Irmã Dulce para a população desassistida: hospitais, maternidade e escola com atendimento gratuito para os pobres. “Uma pessoa dessa, que fazia tudo com amor, já podia ser considerada uma santa. Foi muito lindo o que eu pude presenciar em Salvador”, diz Maria de Fátima Feliciana.
Em 2019, as reeducandas escolheram duas mulheres que trilharam caminhos opostos com o mesmo ideal de vida para elaborar o TCF, observa Edjane Maria. “Um grupo optou por Irmã Dulce e outro por Marielle Franco (vereadora do PSOL no Rio de Janeiro assassinada em março de 2018), duas pessoas que defendiam a população pobre e lutavam contra a discriminação”, declara a professora.
“Achei muito curiosa a vida de Irmã Dulce, era para ela ter sido presidente do Brasil. Irmã Dulce era uma religiosa que fez tudo por amor, sem interesse por nada. Era só por amor aos necessitados, as fracos e aos oprimidos. Ela se preocupava com a educação e tudo começa pela educação de qualidade, com o professor valorizado, é isso que a gente precisa”, afirma Vera Lúcia Nascimento, 50, detida há 2 anos e dez meses.
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