Evita, a mulher cuja morte precoce fez uma nação chorar e a alçou à condição de mito que transcende a esfera política, passou uma vez pelo Recife. A visita da primeira-dama argentina María Eva Duarte de Perón, esposa do presidente Juan Domingo Perón (1945-1952), à capital pernambucana ocorreu entre os dias 15 e 16 de agosto de 1947, quando retornava de viagem de três meses à Europa. Exausta do giro que incluiu Espanha, Itália, França e Suíça e da travessia do Oceano Atlântico a bordo do navio Buenos Aires, ela decidiu fazer uma parada em Pernambuco. Foi recebida por uma multidão de curiosos, jantou e dormiu no Palácio do Campo das Princesas e concedeu entrevista. O cansaço já era sinal do câncer que a mataria cinco anos depois, em 26 de julho de 1952. Às vésperas dos 60 anos de sua morte, celebrados na próxima quinta-feira (26), o Jornal do Commercio reconta a histórica passagem de Evita pelo Recife.
Carismática, Eva Perón nunca viveu à sombra do marido. Desprezada na infância por ser filha ilegítima, alimentou um revanchismo que transformaria em ideal de vida. Mais que primeira-dama, virou a mãe dos pobres. Voltou olhos e suor aos marginalizados. Mulher e lenda, furor e fraqueza, revolução e autoritarismo, Evita ganhou o coração de uma pátria, fascínio que se mantém vivo ainda hoje.
Parte de sua militância em favor dos mais vulneráveis, a líder argentina aportou no Velho Mundo em 8 de junho de 1947. A primeira e principal parada foi Madri. Evita foi recebida com honras pelo ditador Francisco Franco – mentor de Perón – numa Espanha ainda arrasada pela guerra civil (1936-1939), condenada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e sob efeito de um bloqueio energético internacional, com a rede de transportes quase paralisada pela falta de combustível. Na contramão do mundo, a Argentina evitava o isolamento espanhol cedendo grãos para amenizar a fome do povo. Nas ruas, a mãe dos pobres ganhou acenos e aplausos. Eram ditaduras amigas.
Ficou na Espanha até 24 de junho e continuou sua viagem por Itália e França, com a intenção de verificar o estado de proteção de vítimas da recém-encerrada Segunda Guerra Mundial (1939-1945). As escalas não tiveram o mesmo brilho, mas transcorreram sem intercorrências. Evita ainda teve um encontro de meia hora com o papa Pio XII.
Fechou sua excursão ao continente na Suíça, onde teria executado uma missão secreta. A família Perón teria uma fortuna escondida em bancos suíços, graças a uma rede que ajudava nazistas a se refugiarem na Argentina. Mesmo após a derrocada de Adolf Hitler na Alemanha e de Benito Mussolini na Itália, Juan Perón teria permanecido leal ao nazi-fascismo, a quem apoiou na guerra. O mandatário argentino teria disponibilizado mais de mil passaportes em branco para colaboradores nazistas fugirem da Europa para Buenos Aires como refugiados comuns. Recebeu, como recompensa, ouro, joias, objetos de valor e dinheiro.
Foi a grande viagem da primeira-dama que ajudou a sedimentar sua imagem lendária. Mas a larga agenda de compromissos cansou Evita, que tomou um voo de Genebra a Dacar, com escala em Lisboa. Na capital senegalesa, sua comitiva recomendou que o trajeto até a América do Sul fosse feito de navio. Evita necessitava de repouso. Embarcou, então, no vapor Buenos Aires, acompanhada de 600 imigrantes italianos que fugiam para a Argentina. No Brasil, a esposa de Perón participaria da Conferência Interamericana de Manutenção da Paz e Segurança, em Petrópolis (RJ).
No meio do caminho, decidiu descer antes, em Pernambuco, para descansar em terra firme antes de ir ao Rio de Janeiro. O anúncio da visita de Evita causou frisson no Estado. Desde as 20h daquele 15 de agosto de 1947, uma sexta-feira, uma multidão se acotovelava no Porto do Recife à espera da primeira-dama portenha, cuja chegada estava prevista para as 21h. Eram políticos, autoridades, membros da alta sociedade, jornalistas e curiosos de toda sorte ansiosos por ver a deslumbrante e centralizadora líder argentina com seus cabelos loiros e sua imponência.
A embarcação aportou somente perto da meia-noite. Uma lancha da Inspetoria de Polícia Marítima foi buscá-la, com a presença do cônsul argentino no Recife, Santiago Stepinicic; do secretário de Governo, Nilo Pereira; e do capitão dos Portos de Pernambuco, comandante Guimarães Roxo.
Mesmo esgotada, Eva Perón não se esquivou dos repórteres que cobriam a visita histórica e, ainda na embarcação, falou. Indagada sobre os motivos de sua viagem à Europa, foi lacônica: “Apenas fui portadora de uma mensagem de paz e de fraternidade da Argentina ao mundo”. Evita dissera que seu engajamento, já famoso mundo afora, era mais social e menos político: “Não entendo absolutamente de política. Só me interessa o lado espiritual”, declarou, de acordo com reportagem publicada no Jornal do Commercio do dia seguinte.
A primeira-dama despistou ao ser questionada sobre o fato de não ter feito uma parada na Inglaterra, rival histórica da Argentina por conta da disputa pela soberania das Ilhas Malvinas. “Estava há muito tempo longe da Argentina e não me poderia demorar mais. Se eu fosse visitar a Inglaterra, o que seria um grande prazer, teria que riscar do programa a visita ao Brasil, o que não seria possível”, explicou.
Evita ainda tratou de resumir o objetivo central do peronismo, movimento que mais de meio século depois é aclamado por milhões de argentinos e serve de muleta política no país: “O presidente Juan Perón está realizando um programa social no sentido de que existam menos pobres e menos ricos também”.
JANTAR
Findada a improvisada coletiva de imprensa, Eva Perón foi para o Palácio do Campo das Princesas, onde foi recebida com um jantar de gala organizado pelo então governador Otávio Corrêa de Araújo e esposa. O encontro contou com a presença de secretários de Estado e seus familiares. Evita estava acompanhada do irmão, Juan Ramón Duarte, secretário privado de Juan Perón.
“Madame Perón, em nome do governo do Brasil e de toda a nação, com imensa alegria eu saúdo a vossa excelência e ao grande povo argentino”, afirmou Corrêa na ocasião. Evita tomou champanhe e, ao puxar o brinde, exclamou: “Pelo Brasil, pelo presidente Eurico Gaspar Dutra e pela felicidade do povo brasileiro!”. Fotografias do encontro, publicadas no jornal Folha da Manhã, enriquecem as prateleiras do Arquivo Público de Pernambuco e afiançam a história.
O sociólogo pernambucano Roberto Martins, 67 anos, conta que seus pais, o engenheiro civil Jorge Bezerra Martins, que seria cinco anos mais tarde prefeito do Recife, e Lindalva Maia Martins, participaram do jantar. “Foi designado pelo cerimonial que minha mãe se sentasse do lado de Evita na mesa. Elas conversaram bastante e Evita chegou a convidá-la a ir a Buenos Aires para conhecer seu xodó, a Casa de los Niños”, relata. “Eu era muito pequeno, mas lembro que minha mãe sempre falava deste encontro que teve com Evita, que ficou deslumbrada e que ela tinha um carisma impressionante. Mesmo com dores e vomitando, Evita participou do banquete e manteve a pose. Era uma mulher muito vaidosa. Imagine se é possível alguém no calor do Recife vestindo um casaco de pele”, brinca.
Evita pernoitou no Palácio do Campo das Princesas. Levantou-se cedo no sábado, dia 16. Às 8h, telefonou para o marido, o presidente Juan Perón, reportando seu entusiasmo com o caloroso acolhimento do povo pernambucano. Às 10h, foi levada pelo governador à Base Aérea do Ibura, onde tomou um avião da Frota Aérea Mercante da Argentina para o Rio, escoltado por uma esquadrilha de quatro aparelhos. Outra aeronave partiu logo em seguida, “conduzindo o pessoal de serviço da primeira-dama e as bagagens”, segundo matéria do JC do dia 17. “O passeio pelos pontos turísticos e históricos da capital pernambucana, constante do programa de recepção organizado pelo governo, deixou de ser realizado por absoluta falta de tempo”, assinala a reportagem.
O episódio está no livro Eva Perón – La biografía (1995), da escritora argentina Alicia Dujovne Ortiz, considerada a principal biografia sobre a primeira-dama. Foi a única passagem pelo Recife de Evita, que morreria em 26 de julho de 1952, aos 33 anos, após uma luta inglória contra um câncer no útero. Em Pernambuco, ficou um pedaço de sua breve, mas intensa história.