O início das primárias nos Estados Unidos mostra dois candidatos diametralmente opostos na corrida pela indicação dos partidos. Donald Trump (Republicano) e Bernie Sanders (Democrata) preocupam a tradicional liderança de ambos partidos e deixam para trás o fato de não serem inicialmente os mais cotados. Doutorando em ciência política pelo Massachusetts Institute of Technology (MIT), Renato Lima analisa esse início das primárias para o JC.
JORNAL DO COMMERCIO- A última pesquisa da CNN mostra Trump com 41% das intenções de votos republicanos contra 19% de Ted Cruz. Como o senhor avalia estarmos começando as primárias com Trump tão na frente?
RENATO LIMA - A campanha desse ano está cheia de eventos não esperados. Isso já foi reconhecido pelos “pundits” (comentaristas de política na TV, rádio, etc.) e várias previsões anteriores se mostraram erradas. Por isso não faço nenhuma previsão sobre o que acontecerá – mas é possível entender quais os temas que estão com maior ressonância nessa campanha e o desempenho dos candidatos.
É surpreendente a dianteira de Trump e não menos surpreendente que o segundo lugar seja Ted Cruz (um senador de curta carreira política e mais radical). Trump não é um militante do partido republicano (ele inclusive sempre foi muito próximo aos democratas), por várias vezes já tinha dito em eleições anteriores que iria se candidatar. Quando ele disse que ia concorrer à presidência dessa vez foi recebido com muito ceticismo)e ele vem rompendo tudo o que se entende como regras de boa convivência na política. Por exemplo, ele atacou até o senador McCain por ter sido um prisioneiro de guerra (POW), normalmente tratados como heróis no país. Isso para não falar nos comentários contra Mexicanos e contra islâmicos.
O fenômeno Trump é igualmente um fenômeno sobre os seus apoiadores. Esses tendem a não se interessar por todas as contradições de Trump ou as declarações xenofóbicas. Eles estão interessados na mística da retórica que Trump coloca: sem entrar em qualquer detalhe sobre as consequências e a viabilidade, Trump faz comícios prometendo “fazer a América grande outra vez” trazendo empregos de outros países, combatendo a migração ilegal e deportando 11 milhões de pessoas que estão nos EUA e sendo “muito duro” com o terrorismo. Trump nunca entra nos detalhes de como fazer essas coisas, só na retórica. Quem é da América Latina reconhece fácil esse estilo “caudilho” que Trump está imprimindo à corrida presidencial desse ano.
Depois que Trump ficou na frente nas pesquisas, os demais candidatos ficaram se digladiando para saber quem seria o candidato mais tradicional a competir com Trump. Dessa forma, Jeb Bush concentrou ataques em Marco Rubio e Ted Cruz, por exemplo. Só quando Ted Cruz mostrou que poderia competir com Trump que o bilionário começou a atacar Cruz e levantar dúvidas sobre a sua candidatura (Cruz nasceu no Canadá de mãe americana e há dúvidas legais se isso o deixa apto a ser presidente).
Em muitos não se via tanto interesse pelas primárias. Parte disso é pela personalidade de Trump, um mestre de manipular a atenção da mídia, nem que seja com promessas vazias. Isso está asfixiando o tempo de cobertura para questões mais substantivas, áreas em que os outros candidatos possuem muito mais conhecimento: Marco Rubio (jovem, senador de destaque e muito eloquente), Chris Christie (um governador republicano num importante estado democrata), Jeb Bush (muito bem conectado e ex-governador de destaque), John Kasich (governador de Ohio e da ala republicana mais moderada, centrista) e Rand Paul (filho de Ron Paul, um líder libertário dos EUA). Fora esses políticos já com carreira consolidada, temos Carly Fiorina e Ben Carson, ambos candidatos que em determinados momentos estavam em segundo lugar na corrida.
JORNAL DO COMMERCIO - Do lado Democrata, é correto dizer que Bernie se apresenta agora como um candidato competitivo contra o eterno favotitismo de Hillary? O que explica isso? É possível a repetição de 2008, quando ela era a favorita e perdeu para Obama?
RENATO - Sim, Bernie Sanders está competitivo. Ele vem atraindo milhares de jovens em seus comícios, fala de forma consistente sobre temas como desigualdade econômica (que aumentou nos EUA, apesar do crescimento econômico dos últimos anos), e também se vende como um outsider (esse ano o eleitorado está com uma rejeição muito grande a candidatos tradicionais, daí que o crescimento de Bernie e Trump não seja uma surpresa). Sua dificuldade é ser um socialista num país que rejeita essa terminologia (e também seu desempenho no Congresso sempre foi muito fraco em termos de aprovação de leis).
Hillary está enfrentando várias dificuldades em sua campanha. Ela não é um fator novo (e isso diminui a mobilização dos jovens), pesquisas nacionais apontam que o povo não confia nela e ela está enfrentando uma investigação do FBI sobre e-mails enquanto era Secretary of State.
O cenário de Hillary perder era impensável a até 2 meses. Hoje está virando real, até porque Bernie Sanders teve um desempenho muito bom nos últimos dois debates democratas. E há um cenário – talvez pouco provável ainda, mas de forma nenhuma impossível – uma concorrência entre Bernie Sanders e Donald Trump. Os dois tem uma mensagem muito parecida, de populismo: prometem entregar coisas e fazer os outros pagarem. No caso de Bernie é saúde pública universal, e vai pagar com os impostos dos mais ricos. Já Trump promete trazer empregos de firmas que foram para fora e construir um muro entre os EUA e México, fazendo a China e o Japão pagarem (via tarifas) e o México (o muro). Essas propostas ou são viáveis ou seriam contra producentes (aumento de tarifas em produtos importados aumentaria o preço interno das importações além de gerar uma retaliação no mercado exterior). Esse cenário Trump-Bernie é que assustou Michael Bloomberg e o ex-prefeito de NY começou a avaliar uma candidatura independente.
JC - Quais as maiores preocupações do eleitor americano no momento?
RENATO - De modo geral, poderíamos citar a qualidade da geração dos empregos (o nível de desemprego atual é baixo, mas o salário pago não está aumentando), o preço dos serviços médicos (que tende a subir acima da renda média da população) e a insegurança com o terrorismo. Mas setores específicos da população variam muito em suas agendas. Por exemplo, o movimento Black Lives Matter, próximo aos democratas (mas muito crítico do governo também), enfatiza questões como reformas legais, tratamento justo por parte da polícia e igualdade racial. Jovens estudantes ou recém entrados no mercado de trabalho se preocupam com as dívidas do crédito estudantil usado para pagar a universidade. Os conservadores evangélicos tendem a se preocupar com o terror islâmico, a defesa da segunda emenda (o direito de portar armas) e se posicionam contra o avanço de uma agenda mais liberal de costumes, tendendo a apoiar medidas que aumentem o orçamento militar e as restrições ao aborto (por exemplo). Os libertários, que esse ano não estão conseguindo muito protagonismo, se preocupam muito com o tamanho do estado americano e seu custo fiscal (e a dívida do país), o que consideram excesso de regulações que atrapalham a livre iniciativa e se posicionam contra a espionagem governamental das comunicações eletrônicas.
O formato de primárias tende a polarizar a disputa (embora esse ano esteja acima do histórico). Os candidatos primeiro tem que ganhar as disputas dentro dos militantes partidários, e esses militantes são pessoas que têm “strong feelings” por várias dessas causas (armamentos, defesa do exército, contra a migração, etc.). Só que uma vez decidido o candidato do partido, ele é obrigado a se mover ao centro, de forma a obter votos dos independentes e democratas/republicanos menos partidários. Então é possível que essa polarização diminua quando a campanha eleitoral começar, mas como esse ano as tendências do passado não estão explicando bem o presente, pode até ser que aconteça o contrário: que os candidatos optem por polarizarem ainda mais e tentar forçar que as pessoas mais apaixonadas pela política compareçam às urnas (como o voto não é obrigatório, é possível que eleitores centristas fiquem em casa caso não vejam um candidato que o representem).
JC Que movimentação mais chamou sua atenção nas últimas semanas?
RENATO - Finalmente, um episódio importante que ocorreu semana passada foi a revolta de intelectuais conservadores diante da candidatura de Trump. A revista National Review sempre foi considerada a bíblia dos intelectuais conservadores e ela publicou uma edição especial em que várias figuras proeminentes do movimento se posicionaram contra Trump e o que ele representa (https://www.nationalreview.com/nrd/issues/430398). É um engano achar que Trump é um conservador – ele é mais um oportunista que promete o que a plateia quer ouvir.