“É impressão minha ou as coisas estão ficando mais loucas lá fora?”. A pergunta feita por Arthur Fleck a uma assistente social em uma das primeiras cenas de Coringa (Joker, 2019) resume o misto de incômodo e sobressalto que toma grande parte dos espectadores que vão aos cinemas assistir ao filme. A trama principal é o mergulho de Fleck – um homem pacato e mentalmente doente, interpretado de forma magistral por Joaquin Phoenix – em uma espiral de abusos e absurdo que o transforma em um delinquente. Mas a pista para tamanha repercussão pode estar no fato de que a película, para além do delicado tema da saúde mental, verse sobre um mundo onde os principais sentimentos da população são os de vazio e desesperança.
A desordem – urbana e espiritual – da Gotham City de 1981 tem claros ecos na era moderna. A desilusão com a política que resulta na ascensão de governos personalistas – tanto à direita como à esquerda –, a divisão da população (hoje, nas “bolhas” das redes sociais), descrença, vícios, depressão. Ou como uma sociedade cada vez mais niilista pode ser uma fábrica de indivíduos disfuncionais.
Corta para o mundo real. No livro A vida na sarjeta, o cronista Theodore Dalrymple (pseudônimo do psiquiatra britânico Anthony Daniels) relata seu dia-a-dia em um hospital psiquiátrico e no ambulatório de uma prisão – os pacientes da vida real são pessoas sem norte, subempregadas e vivendo em condições adversas, assim como os personagens de Coringa. Dalrymple afirma que o determinismo econômico, a condição genético-racial ou a influência do Estado, por si, não explicam o vazio existencial. “São vidas dominadas, quase sem exceção, por violência, crime e degradação. Negligência, maus tratos quando crianças, relacionamentos destruídos, o mesmo niilismo e o mesmo desespero silencioso”.
Corta de volta para o filme e para uma emblemática frase da assistente social que atende Arthur. “As pessoas estão tristes, lutando, procurando emprego”. Alguma semelhança com uma época em que, apesar do desenvolvimento científico e relativo bem-estar material, as relações de produção mudam em uma velocidade que muitos não conseguem acompanhar? Ainda sobre o vazio espiritual, em um momento crucial do filme (ok, sem spoilers para quem ainda não viu), o protagonista resume a angústia de sua alma. “Nem mesmo eu sabia que eu existia”.
PSIQUE
Essa exposição nua e crua da brutal fragilidade de Arthur Fleck seria um dos motivos da repercussão em torno do filme. “Ele sofre muitas violências, é solitário, tem todos os problemas do mundo. A gente fica com pena, até torce um pouco por ele, chega a desculpar, ao menos em parte, o comportamento violento. O diretor e o roteirista do filme tiveram a intenção de fazer a plateia se identificar com ele”, afirma o psiquiatra carioca Elie Cheniaux, autor do livro Cinema e Loucura: conhecendo transtornos mentais através dos filmes.
O subconsciente da população também entra na discussão. “A polêmica em torno do filme gira em torno de um fato muito simples: o politicamente correto criou uma geração de gente sensível e carente de heróis. Só que em vez de aquela vítima ser o símbolo da virtude e do heroísmo, da luta por justiça social, é alguém que se torna o arquétipo do caos e da violência sem propósito”, afirma o escritor paulista Francisco Razzo, autor de livros como A imaginação totalitária e Contra o aborto.
O publicitário e jornalista Guilherme Coutinho é colunista de veículos ligados à esquerda, como os sites Brasil 247 e Socialista Morena. Em entrevista ao podcast O fato é, do JC, ele defende a teoria de que o conceito marxista de luta de classes é um dos fios condutores do filme, e que isso seria um dos motivos da repercussão. “Havia greve dos lixeiros, movimentos de rua, uma causa que não era a do Coringa. E o descontentamento dos mais excluídos com os mais ricos, que vai ganhando tensão. É um tema atual para todo o mundo”, pontua.
No campo da direita, o cineasta pernambucano Josias Teófilo minimiza o poder de uma eventual mensagem da obra. “Há uma certa obsessão por filmes que passem uma mensagem, que influenciem a realidade social. Como disse (o cineasta) Eduardo Escorel, filmes não mudam o mundo, só mudam o próprio cinema, no máximo. O que deve preocupar ali são as mortes por arma de fogo, o que atrapalha muito a utopia da esquerda: querem viver num mundo cor-de-rosa sem armas e ficam chocados com um filme onde o personagem principal tem uma espécie de libertação através de assassinatos com arma de fogo”.
Outra dura lição do filme, e que traz o espectador para os tempos atuais, é a de como épocas de convulsão social tendem a produzir guias iluminados e salvadores da pátria. Na caótica Gotham, o milionário Thomas Wayne diz ser a única esperança das pessoas, “mesmo que elas não percebam isso”. No final, o sentimento de frustração e raiva faz com que a parcela da população envolvida nos movimentos de rua eleja o próprio Coringa como líder.
“Talvez a experiência mais dolorosa da consciência moderna seja a sensação de ter perdido o centro”, diz o filósofo americano Richard Weaver (1910-1963), no magistral livro As ideias têm consequências (1948). Talvez a maior lição do filme Coringa seja justamente a da busca pelo equilíbrio em um mundo que, de várias formas, força a condição humana ao limite.
ENTREVISTAS
Francisco Razzo
Mestre em Filosofia pela PUC-SP e graduado em Filosofia pela Faculdade de São Bento-SP. Autor dos livros "A Imaginação Totalitária" e "Contra o aborto", publicados pela editora Record.
JC - De uma forma geral, e tentando responder à principal pergunta sobre a matéria, o que causa tanta polêmica sobre o filme?
Numa palavra: é o filme sobre um dos maiores vilões do universo de história em quadrinhos. Além disso, estávamos falando de um filme que conta com a performance de ninguém mais ninguém menos do que Joaquin Phoenix. Fora a apuração estética e ousadia narrativa de Todd Phillips, que herda elementos cinematográficos de Martin Scorsese (Taxi Driver e The King of Comedy). O filme do Coringa narra a jornada não de um herói, mas de um anti-herói. Havia muita expectativa na produção de um filme ligado ao universo da DC que não fosse um fiasco completo como os últimos filmes do Superman e do Batman, por exemplo. Um filme que abrisse mão de toda parafernália gráfica e mostrasse o lado mais humano de uma mente poderosa, porém sombria e criminosa. A polêmica em torno do filme gira em torno de um fato muito simples: o politicamente correto criou uma geração de gente sensível e carente de heróis. Só que em vez de aquela vítima, que é constantemente humilhada por poderosos e não tão poderosos assim, ser o símbolo da virtude e do heroísmo, da luta por justiça social, essa mesma vítima se torna o arquétipo do caos e da violência sem propósito. Contudo, ainda vale lembrar, que Coringa continua sendo o principal inimigo do Batman. E o filme não desvincula isso em nenhum momento. Arthur Flack vive na decadente Gotham City. Lá temos Alfred Pennyworth, Bruce Bruce Wayne, Thomas e Martha Wayne, o Asilo Arkham etc. Não é uma narrativa descolada de seu universo mítico fundador. E cá entre nós, a vida em Gotham City sempre foi instigante como a vida em qualquer grande cidade: criminalidade, corrupção etc. É a ambiguidade da vida moderna, do homem moderno. Nos filmes dedicados à atitude heroica, sempre assistimos essa ambiguidade vivida na perspectiva do Batman (não há à toa os melhores filmes são os do Christopher Nolan, que conseguiu mostrar essa tensão em um filme de herói como nenhum outro diretor). Agora experimentados a ambiguidade pelo lado oposto, e o que ele não oferece liberdade, justiça e redenção. Oferece o aprisionamento mental, o delírio de grandeza e a violência.
JC - Existe uma evidente trama de ruína psicológica no filme, mas o espectro de reações do público levou em conta inclusive questões políticas. A que você atribui isso?
Definitivamente o filme não é político. O próprio diretor, em entrevistas, reconhece isso. O elemento político é marginal ali. O filme, como disse, conta a história da origem do Coringa, um dos maiores vilões de história em quadrinhos de todos os tempos. O diretor também manteve, com certa liberdade narrativa, a história da origem do Coringa ligada à história do surgimento do Batman, faz isso por uma nova perspectiva (suspeita de que Arthur Fleck seja irmão do Bruce Wayne; ou seja: Coringa irmão do Batman). Pessoalmente, gostei bastante da possibilidade e da sutileza como isso foi “amarrado” no filme. Talvez os fãs mais ortodoxos questionem essas escolhas. Quanto a reações do público em politizar tudo, penso que faz parte do nosso estado de espírito. O que é bizarro. Claro que cada um pode interpretar o filme como quiser, mas esse tipo de preocupação serve como termômetro de uma época que não consegue mais ver uma obra de arte por aquilo que ela é: obra de arte. O filme do Coringa deve conversar com outros filmes, com outras referências estéticas e cinematográficas, e não com questões partidárias. De qualquer forma, veja que curioso. No baralho, "Coringa" não tem valor definido. Trata-se de uma carta que muda de valor por não ter valor, pois aceita qualquer combinação de cartas que o jogador tem em mãos (claro, depende do jogo). Quando penso no filme e na reação política a ele, é notável que essa característica conseguiu ser preservada. Como o Coringa não representa ninguém e não tem causa própria, ele pode se adequar a causa de todos. Coringa é, literalmente, a carta em “branco”, o nada que se adequa a qualquer combinação ideológica. Por isso os ideólogos encontram nele uma carta especial. As análises que li por aí demonstram isso. Se o ideólogo for de esquerda, o Coringa será usado como aquele que representa a ameaça da direita: Trump, populismo contra a democracia, reacionarismo doentio; por sua vez, se o ideólogo for de da direita, teremos um Coringa que representa ameaças da esquerda: revolução, gramscismo, jacobismo etc. Cada um faz o que quiser com o Coringa. Ele é o nada. E no nada, cabe tudo.
JC - Do ponto de vista do impacto psicológico, você acha que o longa marca uma era? Ou é apenas uma boa produção cinematográfica? Ou nenhuma das duas coisas?
O que é novo aqui é a forma como narrar a origem de um famoso vilão. Há muitas maneiras de fazer isso. Por exemplo, Thanos e Darth Vader, cada um a sua maneira, foram vilões bem construídos, mas sempre como antagonistas de grandes heróis. No caso do Coringa, não há antagonismo direto. Quando fui ao cinema com um amigo, ele comentou: “ainda bem que não tem o Batman nesse filme”. A gente sempre sabe que super-heróis como Batman ou Superman acabam resolvendo tudo de alguma forma, como se cada um fosse um “Deus ex machina” de seu universo. Explicitamente, não há isso no novo filme do Coringa. Não há rivais compatíveis com a sua loucura. Coringa destrói toda possibilidade de heroísmo. Quero dizer, faz o senso do heroico perder o sentido. Confesso que saí do filme imaginando como seria um Batman rivalizando com ele. Pelo menos até agora, não há.
Josias Teófilo
Cineasta, diretor de O jardim das aflições
JC - De uma forma geral, e tentando responder à principal pergunta sobre a matéria, o que causa tanta polêmica sobre o filme?
Acho que o que causa polêmica é uma certa obsessão que existe atualmente por filmes que passem uma mensagem, que influenciem a realidade social etc. Como disse Eduardo Escorel, filmes não mudam o mundo, filmes só mudam o próprio cinema, no máximo. No caso o que deve preocupar ali especialmente é as mortes por arma de fogo, que atrapalha muito a utopia da esquerda. Os caras querem viver num mundo cor-de-rosa sem armas e ficam chocados com um filme onde o personagem principal tem uma espécie de libertação (mesmo que dentro do seu mundo doentio) através de assassinatos com arma de fogo.
JC - Existe uma evidente trama de ruína psicológica no filme, mas o espectro de reações do público levou em conta inclusive questões políticas. A que você atribui isso?
As pessoas hoje querem ver política em tudo, esquecem de questões estéticas – o que emociona no Coringa é excelência da atuação, da direção de arte, da imagem, a trama ou a possível mensagem só fazem sentido por estarem em harmonia com esses aspectos.
JC - Do ponto de vista do impacto psicológico, você acha que o longa marca uma era? Ou é apenas uma boa produção cinematográfica? Ou nenhuma das duas coisas?
Acho que é um filme excelente, e pode sim vir a marcar época, mas se for será apenas por questões estéticas, e não políticas. Aliás, bom lembrar que tem ali no filme Robert de Niro, que fez Taxi Driver, filme que inclusive inspirou o sujeito que tentou assassinar Ronald Reagan, mas ninguém nem lembra disso hoje. De modo que os efeitos de uma obra de arte são muito menos importante que a obra em si.