A decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de reclassificar o canabidiol, passando a considerá-lo como medicamento de uso controlado e não mais como substância proibida, poderá facilitar o debate sobre os usos medicinais da maconha no Brasil. O canabidiol é uma substância, presente na folha da maconha (Cannabis sativa), que é usada para tratamento de doenças neurológicas, câncer, mal de Parkinson, entre outras.
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Com a reclassificação, a expectativa é que os estudos científicos sejam ampliados, viabilizando a produção de novos medicamentos. Essa é a opinião do neurocientista da Universidade de Brasília (UnB) Renato Malcher, para quem a decisão foi uma vitória política diante de visões conservadoras.
Malcher conta que, antes, os estudiosos gastavam tempo e dinheiro à espera de autorização para estudar a substância. Com a decisão, “qualquer cientista pode simplesmente olhar um catálogo na internet e fazer a compra dele [do Canabidiol] tendo que lidar apenas com a questão de taxa alfandegária e mais nada. Não precisa mais de uma autorização da Anvisa para poder lidar com uma substância proscrita”.
Estudos com maconha são feitos no Brasil pelo menos desde a década de 1930. Os primeiros destacavam os chamados males da maconha, quais perigos sociais gerados por ela e também os sintomas apresentados pelos usuários. A partir de 1960, a psicofarmacologia e a psicobiologia estudaram a planta com outros vieses, reconhecendo propriedades ansiolíticas e antipsicóticas, dentre outras.
Mas a proibição da maconha aqui e em diversos países dificultou o avanço das pesquisas. “Não é uma novidade que a maconha tenha poderes medicinais, mas todo o embargo que foi feito sobre a ciência gerou uma represa, em escala mundial, que está vazando por todos os lados”, diz Malcher.
Com a reclassificação do canabidiol, outros temas devem vir à tona, segundo o pesquisador, que aponta a necessidade de liberar os demais derivados. “A pesquisa hoje é muito prejudicada pelo próprio estigma e pela dificuldade de explorar essa área mais ampla, que é poder plantar, desenvolver plantas diferentes, extrair os óleos e testar as combinações”, explica.
Dada a versatilidade da cannabis, a ciência tem vários caminhos de pesquisa que podem ser trilhados. Por exemplo, poderá isolar cada componente da erva que tem potencial terapêutico e testar a atividade dele, bem como produzir diferentes plantas com proporções particulares de canabinoides.
Segundo Malcher, o extrato de cada uma dessas plantas pode ser utilizado para tratar doenças específicas, como psicose, esquizofrenia, ansiedade, inflamações crônicas, esclerose, epilepsia e até mesmo câncer, dado que algumas substâncias têm o poder de evitar a proliferação de células doentes.
“O que o canabidiol representa nesse momento é um ponto de inflexão. Passamos de um momento de visão muito estigmatizada sobre a planta para um momento em que a gente vai ter um respaldo social e político inevitável para explorar a metodologia que nós temos hoje para tirar o maior benefício possível dessa dádiva”, disse.
Malcher aponta que os defensores da ampliação dos estudos e do uso fitoterápico da planta também terão que enfrentar os interesses da indústria farmacêutica, isso porque ela confere a cada variação genética das plantas, no caso da possibilidade da Cannabis ser plantada no Brasil legalmente, uma patente, o que poderá dificultar o acesso para fins científicos e aumentar os custos do produto final.
Ainda segundo Malcher, estudos que analisaram o uso medicinal do canabidiol mostraram que, em 80% dos casos relatados, apenas essa substância foi mais efetiva no tratamento de determinadas doenças do que cerca de doze remédios que eram usados diariamente pelos participantes da pesquisa.
As substâncias derivadas da maconha atuam sobre o que o pesquisador chamou de sistema de sinalização do organismo, responsável tanto pela percepção da saúde, como dor, tristeza e psicose, quanto por efeitos fisiológicos, a exemplo da inflamação.
Diante da situação, o cientista acredita que a indústria terá que se adaptar ao novo cenário e que os profissionais, hoje formados para receitar remédios tradicionais, poderão vivenciar “um novo paradigma”.