Algumas distorções do setor público brasileiro vieram à tona com o estudo Gestão de pessoas e folha de pagamentos no setor público brasileiro: o que dados dizem?, realizado pelo Banco Mundial (Bird). Entre outras, o levantamento mostra que o servidor público leva, em média, 10 anos, da contratação para chegar ao topo da carreira. Isso porque, muitas vezes, as promoções ocorrem em curtos períodos de tempo – dois anos, por exemplo – e, em algumas funções, o salário inicial já é acima de R$ 20 mil. Para se ter uma ideia da distorção entre os planos de carreiras do setor público e privado, a reportagem do JC escutou dois executivos de grandes empresas. O primeiro levou 27 anos para ir de um cargo intermediário, como gerente comercial, até o topo da carreira. O segundo levou exatamente duas décadas para sair do cargo de estagiário a presidente da companhia.
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No seu primeiro emprego, aos 16 anos, o executivo Paulo Drummond ganhou o Prêmio de Melhor Contínuo do Banco Mineiro do Oeste, trabalhando numa agência localizada no Recife. “Tenho o maior orgulho disso. Foram mais de três décadas dessa primeira contratação até chegar à presidência da empresa”, conta Drummond, atual presidente da empresa Vivix Vidros Planos, onde chegou em 1980, como gerente comercial. Foram 27 anos para chegar ao cargo mais alta da companhia – passando pelos cargos de superintendente comercial e diretor comercial. Para isso, foram inúmeros treinamentos. “É difícil comparar o setor público com o privado. No privado, para ascender, é preciso ter mérito, comprometimento, produtividade e resultado. A impressão que tenho é de que no serviço público a promoção vem com o tempo para a maioria dos servidores”, conta Drummond.
E um salário inicial acima de R$ 20 mil?, foi questionado. “Na iniciativa privada, só se chega a um salário desse do meio para o fim da carreira”, conclui.
O atual presidente da Celpe, Saulo Cabral, começou a trabalhar na concessionária de energia como estagiário, há duas décadas. Este ano, assumiu a presidência da distribuidora depois de passar pelos cargos de engenheiro, a primeira contratação após o estágio. Em seguida, passou pelas funções de gestor, gerente e superintendente da Coelba, a distribuidora que atua na Bahia e faz parte do mesmo grupo da Celpe, o Neoenergia. “Não foi uma carreira vertical, tinha que passar por várias áreas do mesmo cargo para poder ter uma promoção”, diz. E cita como exemplo o cargo de gerente no qual respondeu pelas gerências da operação do sistema elétrico, de construção e ligações novas e do programa Luz Para Todos para, posteriormente, chegar ao cargo de superintendente. “Não consigo fazer a comparação entre o público e o privado, porque não conheço o setor público. Não é a regra chegar ao topo da empresa em 10 anos. Sou considerado uma exceção, porque, no meu caso, isso ocorreu em 20 anos. O mais natural seria esse percurso se dá em 30 anos”, comenta. Ele também argumenta que na empresa em que atua não há cargo com salário inicial superior a R$ 20 mil, como ocorre em algumas carreiras do setor público.
A contratação inicial acima de R$ 20 mil é “vista como um desestímulo à motivação, porque a pessoa vai ter uma grande motivação para entrar, mas não vai haver uma grande motivação para crescer. Não há uma progressão”, conta a professora da FGV Ebape Alketa Peci. O próprio estudo do Bird aponta que uma das distorções desse salário inicialmente alto é um desestímulo ao bom desempenho, porque o vencimento vai se manter quase no mesmo patamar até a aposentadoria. “É uma constatação verdadeira”, diz o presidente da Associação dos Magistrados do Estado de Pernambuco (Amepe), Emanuel Bonfim.
Ele argumenta que o salário inicial do juiz é “alto” porque esse profissional não pode ter qualquer outra atividade a não ser ensinar em curso de direito, assim a remuneração dá uma certa proteção à figura do juiz. “A cultura do brasileiro é de litigar com tudo. Então, temos 18 mil juízes (estaduais e federais) para 100 milhões de processos em tramitação”, explica, alegando que o viés do estudo do Banco Mundial “é o de enxugar para se ter um Estado mínimo”.
Bonfim afirma que, para conseguir ser um juiz, a pessoa deve concluir os 5 anos da graduação do curso de Direito e, após formado, ter mais 3 anos de experiência na área, o que totaliza, no mínimo, 8 anos de preparação. De acordo com o Bird, entre os poderes, proporcionalmente, o Judiciário foi o que mais aumentou os gastos com pessoal, saindo de 7,3% do gasto total com pessoal da União em 1995 para 13,8% em 2018. Isso ocorreu porque a Constituição de 1988 dobrou o tamanho do Judiciário no Brasil e grande parte dessa expansão ocorreu na década de 1990.
A divulgação do estudo ocorre quando o governo federal volta a falar da reforma administrativa, um conjunto de iniciativas que podem definir novas regras para os servidores públicos. “A estabilidade deve ser mantida, porque garante a gestão pública democrática, independente dos governantes que entram e saem à frente dos governos”, conta Alketa Peci.
O levantamento aponta que o Brasil poderia rever a forma de contratação para enxugar a quantidade de funcionários, substituindo os que estão se aposentando por contratações mais “racionais”. O levantamento também mostra que há falta de gestão na administração dos servidores públicos federais e sugere que o governo tenha “racionalidade” com essas despesas nos próximos anos. Somente como exemplo, existiam 299 carreiras de servidores em 2017, divididas em 25 ministérios ou entidades.
Ainda no levantamento, chama a atenção outra informação que mostra como é difícil a progressão na carreira pública. Apenas em 2017, mais de quatro mil servidores reingressaram no serviço público por novo concurso e eles tiveram reajustes médios de 182,5%, comparando com os cargos anteriores. E, por último, o estudo diz: “no Brasil, os servidores chegam ao topo sem serem os mais preparados”. E cita também uma coisa básica: “a progressão na carreira deveria ser baseada em desempenho”.
Professor da FGV e especialista na área de gestão pública, o economista Istvan Kasznar considera uma “enormidade” o País usar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para pagar os servidores nas três esferas. “Isso significa que 25% de tudo que se arrecada no Brasil vai para pagar os salários”, diz, acrescentando que é preciso ser muito cuidadoso nas comparações entre os salários da iniciativa privada com o da pública.
Kasznar diz que o Brasil precisa de um choque de organização na folha de pagamento da mão de obra, uma revolução nos métodos de contratação, habilitação, treinamento e remanejamento de pessoal. “O Brasil apresenta condições de revisar as estruturas salariais de remuneração, mas isso tem que ser feita de uma forma muito cuidadosa, responsável, porque vai lidar com a vida das pessoas. E existem cargos nos quais podem ser justificados os altos salários dos servidores públicos. O que não dá para aceitar é um fato, como o revelado na semana passada no Rio de Janeiro, a existência de 17 mil funcionários fantasmas de um total de 140 mil servidores. Isso é imoral, inaceitável”, resume.
O estudo do Bird diz que os servidores públicos federais ganham 96% a mais do que os que estão na iniciativa privada. Já os servidores dos Estados, 36% a mais. “O turn over (giro) da iniciativa privada é muito rápido. No setor público e privado podem ocorrer enormes diferenças. Por exemplo, uma pessoa que esteja há 20 anos no setor público vai ganhar mais do que um da iniciativa privada que ocupe o mesmo cargo (por menos tempo)”, compara.
REFORMA ADMINISTRATIVA
Encomendado ainda no governo do ex-presidente Michel Temer (MDB), o estudo do Bird provavelmente vai ser usado para desenhar a reforma administrativa que o governo federal pretende realizar.
Coordenador geral do Sindicato dos Servidores Públicos Federais de Pernambuco, José Carlos Oliveira discorda das informações do estudo, alegando que grande parte dos servidores federais está com os salários achatados, com perdas em torno de 24%, entre 2015 e 2018. Segundo ele, isso não vale para carreiras consideradas de Estado, como a Polícia Federal e nem os funcionários da Receita Federal. Ele diz que 80% da gratificações pagas aos servidores públicos federais estão atreladas ao cumprimento de metas de produtividade institucionais definidas pelos órgãos aos quais os servidores estão locados e os 20% restantes das gratificações só são pagas se o servidor tirar acima de 8 no desempenho individual (por produtividade).