Indicado pelo governador Eduardo Campos (PSB) para coordenar os trabalhos da Comissão Estadual da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, o advogado Fernando Vasconcelos Coelho – ex-presidente nacional da OAB, ex-deputado federal e um dos fundadores do MDB – diz que atuará sem a preocupação de desagradar a quem quer que seja, e garante que a comissão vai dar frutos. Nesta entrevista ao JC, ele evita citar casos prioritários, mas admite que alguns “saltam aos olhos”. E adianta sua intenção de entregar ao Judiciário um relatório robusto, contendo um resgate histórico de dados sobre vítimas da ditadura que nunca chegaram ao conhecimento público. “A justiça será o episódio seguinte”, garante. A seguir, trechos da entrevista:
JC – O senhor esperava o convite do governador para integrar a Comissão Estadual da Verdade?
Fernando Coelho – Não me surpreendeu. Algumas pessoas haviam me dito que o convite aconteceria, e inclusive me pediam para não recusar. Isso muda um pouco meu programa. Hoje estou muito dividido entre Recife e João Pessoa. Tenho um escritório (de advocacia) lá, um apartamento. Uma filha que mora lá. Eu mesmo sou paraibano, embora tenha sido criado aqui. Mas como estou aposentado, meu trabalho maior é ler e escrever. Agora, vou ficar mais por aqui.
JC – A Comissão Nacional da Verdade foi empossada pela presidente Dilma Rousseff em meio à polêmica sobre investigar os dois lados ou somente o lado dos militantes mortos e desaparecidos. Espera uma discussão semelhante em nível estadual?
Coelho – Não acredito. Há uma consciência de que a comissão tem que atuar nos limites da lei que a criou. Essa comissão não tem poder de julgar nada, só de investigar. Na sistemática do direito, julgar é função do Judiciário. O que a comissão tem obrigação de fazer é um relatório do que viu e do que conseguiu apurar em relação a fatos polêmicos inclusive.
JC – Esse impedimento de recomendar punição não enfraquece o trabalho?
Coelho – A comissão não tem poder de punir, mas não está impedida de recomendar punição, de emitir uma opinião sobre os fatos. Todos têm opinião firmada num sentido ou noutro. Essa polêmica que está havendo em nível federal é consequência disso. Mas quem participou um pouco que seja dos fatos, tem opinião.
JC – O senhor acredita que os trabalhos podem vir a sofrer críticas ou desagradar setores como os militares, que apontam “desequilíbrio” nas investigações?
Coelho – Acho que já há uma consciência de que ninguém deve ter medo da verdade. E não há uma verdade oficial. A verdade será a que a comissão vier a apurar. Nem reações de aplausos ou de críticas devem afetar os trabalhos. A comissão tem um objetivo, uma linha, e o compromisso dela é com a verdade. Agrade ou desagrade a quem quer que seja.
JC – Que tipo de relação o senhor pretende estabelecer com a Comissão Nacional da Verdade e com as comissões de outros Estados?
Coelho – É importante uma colaboração mútua. Primeiro porque os fatos que ocorreram naquele período não podem ser tratados como exclusivamente locais. Havia um problema nacional com repercussões ocasionais num Estado ou noutro. Acho que um contato permanente entre as comissões que têm o mesmo compromisso e o mesmo objetivo de chegar à verdade é importantíssimo.
JC – Algumas entidades, como o Movimento Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro, apontam falta de interação entre a Comissão Nacional da Verdade e o Judiciário. Como será o diálogo da comissão estadual com os poderes públicos?
Coelho – A nossa comissão ainda nem começou a trabalhar. Mas acho que a comissão, tanto quanto possível, deve refletir a ideia do conjunto. Em princípio, ninguém tem o direito de emitir opinião pessoal, e atribuir à comissão. Eu, mesmo sendo coordenador, não posso falar pela comissão. Decisões sobre temas polêmicos devem ser tomadas em conjunto, até para, num tribunal, essa posição ter força. Agora, não tem porque atuar com os poderes públicos neste momento. O Judiciário, assim como o Ministério Público, têm funções que começam depois que receberem o relatório. Cabe à comissão municiar esses órgãos.
JC – Então, a comissão da verdade tem a missão de historiar os fatos?
Coelho – O compromisso da comissão é assegurar uma verdade para a história. Levantar fatos e dados para que a história estabeleça conclusões, que não são individuais, mas de um grupo. Há fatos, sobretudo num período nebuloso como aquele, que nunca chegaram ao conhecimento público. E o objetivo da comissão é revelar esses detalhes. Acho, inclusive, que essa comissão deveria ter vindo antes. Mas chegou no momento possível e vai dar frutos. Sem revanchismos, assumindo o compromisso com a verdade. A justiça é o episódio seguinte.
JC – O senhor é contra ou a favor do movimento que pede a revisão da Lei da Anistia, para poder julgar ex-agentes da repressão?
Coelho – Esse debate está totalmente equivocado. Não é problema de revisão da lei. A lei existe, entrou no mundo jurídico e produziu efeitos. Agora, a sua interpretação é que está sendo feita de forma errada. Tem gente, por exemplo, que diz que houve um acordo para aprovar a lei, e que é preciso respeitá-lo. Não houve acordo nenhum! Houve brigas, confrontações permanentes, até no nível pessoal. No dia da votação, as Forças Armadas chegaram a ocupar as galerias do Congresso Nacional para não deixar o povo entrar. Em assuntos que provocavam mais polêmica, não houve uma vez só que MDB e Arena votassem juntos. Quando um dizia “sim”, ou outro votava “não”.
JC – Mas a lei abrangeu os dois lados e protegeu autores dos crimes...
Coelho – Quando veio a lei, falavam em crimes conexos, dando a interpretação que crime conexo abrange tortura também. Na época, o relator da lei dizia que o capítulo dos crimes conexos deveria abranger crimes bárbaros e hediondos. Mas a Arena não concordava. O parecer aprovado no final dizia que não tinha que excluir da lei os crimes de tortura, porque eles não estavam incluídos entre os crimes conexos.
JC – Na Comissão Nacional da Verdade há quem defenda a revisão da lei.
Coelho – Não precisa revisar a lei. Precisa saber interpretá-la. E os tribunais, a toda hora, estão mudando a interpretação. O Supremo Tribunal Federal, recentemente, mudou de novo. Tudo depende do tempo em que se analisa, da composição do tribunal... Só uma convicção que sempre houve e que não muda é a de que tortura não é anistiável. Embora não houvesse uma lei específica dizendo isso no Brasil. Só passou a existir por escrito na Constituição de 1988. Mesmo assim, na prática os agentes da repressão continuaram anistiados. E quem plantou esse entendimento foi a ditadura, que teve a preocupação de fixar a anistia para todos eles. Lembro que na época dos debates para aprovar a lei, muitos deputados de oposição denunciaram que se estava beneficiando os torturadores. Tanto que no substitutivo apresentado pelo MDB ao projeto original enviado pelo governo havia um artigo dizendo que a tortura não estava incluída nos crimes conexos. O relator do projeto concluiu que não precisava colocar isso no texto, mas é preciso ressaltar que nunca houve acordo nesse sentido.
JC – Então a aprovação da Lei da Anistia não foi pactuada como se diz?
Coelho – Há uma confusão grande entre os episódios da Anistia e o da transição democrática. A transição, com a eleição de Tancredo Neves (1985), foi pactuada com os militares e transcorreu de forma tranquila. Já na aprovação da Lei de Anistia, mais de cinco anos antes, não houve acordo. Houve muitas brigas. O Brasil inteiro estava nesse clima (de confronto). Até acredito que tenha havido um entendimento pela aprovação, mas não com a oposição, e sim dentro do próprio governo, entre os militares mais liberais e os da linha dura.
JC – Na sua opinião, quais os casos que deverão ser priorizados nas investigações da comissão?
Coelho – Não há ainda nenhuma definição sobre uma pauta. Há casos que saltam aos olhos, e eu tenho as minhas preferências, mas é preciso decidir em grupo. É possível que nem todos os integrantes tenham o mesmo entendimento sobre eles.
JC – As investigações extrapolam o regime de exceção pós-64 e vão até o Estado Novo (1937-46). Há algum caso a ser investigado em Pernambuco daquela época?
Coelho – Já vi gente se referindo nos jornais ao assassinato de Demócrito de Souza Filho e de Manoel Carvoeiro. Mas essas coisas que estão mais no passado me parecem de certa forma esclarecidas. Creio que deveremos focar o trabalho no período pós 64, mas isso não exclui que se traga casos assim para a comissão.
JC – A comissão vai se deter nos casos ocorridos em Pernambuco ou vai investigar crimes contra pernambucanos cometidos fora, como o caso de Fernando Santa Cruz, por exemplo, desaparecido no Rio de Janeiro?
Coelho – Vai sim. Eu, inclusive, fui o primeiro a denunciar o caso de Fernando, na campanha eleitoral de 1974, quando era candidato a deputado, a pedido da mãe dele, dona Elzita. Acho que o fato de ter acontecido fora do Estado não impede que investiguemos.
JC – Na semana passada, o jornalista Marcelo Mário Melo, ex-preso político, criticou aspectos do currículo de alguns integrantes da comissão. Como reagir a questionamentos assim?
Coelho – A crítica faz parte do processo. Sempre vai existir. Se for uma crítica construtiva, a comissão deve acolher e tentar corrigir o que estiver equivocado. Outros tipos de crítica, porém, é passar adiante e seguir em frente.
JC – O que se pode esperar do relatório da comissão?
Coelho – A lei já diz para onde irá o relatório. A comissão vai sugerir medidas e os órgãos aos quais o relatório será enviado darão o tratamento que as conclusões justificarem. O que não pode é antecipar que vai concluir por isso ou aquilo. Faremos o trabalho na esperança que ele tenha consequências. Mas quando se tem uma visão da história, se sabe que não é possível se fazer tudo no espaço de vida de uma pessoa. As coisas acontecem demoradamente. O que houve em qualquer ditadura, inclusive no Brasil, terá uma consequência. No mínimo, um juízo negativo na história, que deve ser útil para que gerações mais novas não reincidam em certos erros e práticas.