Lá fora, o muro de metal de dois metros de altura, erguido bem em frente ao Congresso Nacional, aparta brasileiros de brasileiros. No lado de dentro, no plenário da Câmara dos Deputados, nervos à flor da pele e olhos vidrados no painel acompanharão, voto a voto, uma contagem histórica que decidirá muito além do destino de uma mandatária. Definirá como e com que pernas caminhará a jovem democracia brasileira. Passaram-se exatos 137 dias desde que o deputado Eduardo Cunha (PMDB), na condição de presidente da Câmara (apesar de réu em ação no Supremo Tribunal Federal), acolheu o pedido de abertura de processo de impeachment contra a presidente Dilma Rousseff (PT). Nesses pouco mais de quatro meses, a iniciativa ganhou e perdeu força. Quase foi dada como morta. Ressuscitou e neste domingo (17) terá, a partir das 14h, um de seus embates decisivos. Cento e setenta e dois “nãos” engavetam de vez a proposta e dão a Dilma a possibilidade de seguir adiante no comando do Brasil, em meio a um cenário de forte crise econômica. Trezentos e quarenta e dois “sins” conferem o aval para o fim de um mandato referendado, nas urnas de 2014, por 54.501.118 eleitores. Nesse caso, caberá ao Senado, sob a presidência do STF, decretar a palavra final sobre o futuro de Dilma e do País.
O tumultuado e controverso caminho que jogou o Brasil de volta ao ponto mais traumático do presidencialismo, 24 anos após a destituição do ex-presidente Fernando Collor (PDC), nos lançou diante de um retrato da nação que estampa mais defeitos que virtudes. Desenho mal traçado pela enxurrada de denúncias de corrupção que atinge grande parte dos políticos encarregados de julgar o impeachment e pela intolerância que impera nas ruas e se amplifica no campo virtual das redes sociais. Oposição e governo carregam pecados pelos quais ainda terão muito o que purgar. “A imagem que me vem à mente é a do romance O Retrato de Dorian Gray, do escritor Oscar Wilde. A partir do impeachment (caso ele seja confirmado), a parte feia do retrato vai começar a aparecer mais fortemente”, compara o professor de Ética e Filosofia da Unicamp Roberto Romano.
Para onde e de onde se olha, o professor avalia que, em relação ao sistema político, não há muito o que comemorar. “O impeachment é, por um lado, resultado de uma degradação cada vez mais acelerada da estrutura federal e da perda de parâmetro no trato do Poder Executivo com o Estado no seu todo. E, por outro, uma espécie de revanche de um Poder Legislativo forte diante da fraqueza de uma presidente inábil politicamente.” Um empoderamento que, aos olhos de Romano, é questionável. “Se o (vice-presidente) Michel Temer (PMDB) conseguir assumir, ele vai ser pressionado a cada segundo pelo Congresso Nacional. Esse Congresso, por sua vez, tem pés de barro. Mesmo fortalecido, ele não desfruta da plena legitimidade da população.”
O cientista político Cláudio Couto, professor da Fundação Getúlio Vagas (SP), é cético dos frutos positivos que o atual processo possa trazer ao País. “Na realidade, a gente ainda vai amargar um bom tempo de funcionamento de um sistema político tremendamente corrupto e com pouca capacidade de fazer com que os deputados prestem efetivamente conta dos seus atos”, avalia. Segundo Couto, o problema do impedimento votado neste domingo é que ele carrega o “pecado original” de um inconformismo com o resultado eleitoral de 2014. “Então eu vejo que se criou uma narrativa de um impeachment em busca de uma causa. E acabou se encontrando o argumento das pedaladas fiscais, que trata do desrespeito à Lei de Responsabilidade Fiscal como condição suficiente para o impedimento. Só que essa é uma discussão ainda não totalmente resolvida e para a qual não existe precedente.”
Quando questionado sobre a capacidade do País de reagir ao atual momento de incerteza política (tendo à luz a experiência histórica da deposição de Collor), ele chama atenção para dois fatores que se agravaram nas duas últimas décadas: a fragmentação dos partidos e a falta de lideranças nacionais capazes de comandar esse processo de reconciliação nacional. “Do ponto de vista da representação, piorou muito. Hoje temos inacreditáveis 39 partidos. Os políticos, por sua vez, perderam a capacidade de formulação e liderança e passaram a ser, em sua maioria, arrecadadores de campanha. Veja bem: a gente mal consegue diferenciar hoje alto e baixo clero. Parece que só tem baixo clero e aqueles parlamentares que tem uma capacidade mais destacada, não estão em cargos de direção na casa legislativa.”
Defensor do impeachment da presidente Dilma Rousseff, o historiador Jean Marcel Carvalho França, da Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquista), diz que uma possível saída do PT da presidência encerrará um ciclo que já se mostrou politicamente esgotado não só no Brasil, como na America Latina. “É um regime que entrou em colapso simplesmente porque se mostrou inviável. Quebrou a economia, aparelhou o Estado, fez benesses com dinheiro público e cometeu uma transgressão clara da Lei de Responsabilidade Fiscal. Caso o impeachment seja aprovado, Michel Temer assumirá um Estado falido”, avalia. Apesar de concordar que a biografia do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, e de muitos de seus pares não engrandece o Congresso Nacional, ele diz que a condução do processo de impeachment é legítima porque, assim como a presidente, esses parlamentares foram igualmente eleitos pelo voto popular. “Esse é o Congresso que temos. Sigamos a Constituição com ele. É lamentável? É. Mas é legítimo.”
LAVA JATO
Fator imponderável e preponderante para o desenrolar dos fatos que alimentaram o ambiente político favorável ao impeachment da presidente Dilma (apesar de, pessoalmente, não pesar sobre ela nenhuma acusação de corrupção), a Operação Lava Jato e sua capacidade de provocar baixas entre cardeais da política brasileira será uma das maiores incógnitas de um possível governo comandado pelo PMDB. Terá Michel Temer a grandeza de cortar na própria carne, tendo em vista que alguns dos principais implicados no esquema de corrupção investigado pelo juiz Sérgio Moro (à frente das investigações) são seus companheiros de partido?
“Eu suponho que um certo ímpeto da Lava Jato se reduza, porque acredito que os interesses de divulgação do seus atos serão menores após uma possível saída da presidente Dilma, tanto por parte da imprensa quanto da opinião pública”, aposta o cientista político Cláudio Couto. “Esse é um processo sem volta. As pessoas perceberam que o custo da corrupção é alto não só por sangrar os cofres públicos, mas porque tem um impacto na vida diária do cidadão”, defende o historiador Jean Marcel.
Com ou sem a saída de Dilma da presidência, há um consenso entre historiadores e cientistas políticos de que um dos maiores desafios do atual momento é desencadear um processo de conciliação que passa pelo campo político e se estende à sociedade. O aumento do acirramento, no entanto, trouxe um componente novo entre as matizes ideológicas que ganham cada vez mais vozes no Congresso e nas ruas: o surgimento de uma direita assumida no Brasil. “Talvez desde o golpe de 1964 a gente não tinha uma direita tão fortalecida, inclusive com um sentimento de orgulho por defender ideias de intolerância”, afirma Cláudio Couto.
O professor da Unicamp Roberto Romano lembra uma frase dita por ele, há cinco anos, mas que permanece mais viva do que nunca: “Quem escolheu o realismo político, como fizeram os ex-presidentes Fernando Henrique Cardoso (PSDB) e Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ao abraçar figuras como José Sarney (PMDB) e Jader Barbalho (PMDB), colhe (Jair) Bolsonaro (PSC). Você não semeia direita e colhe esquerda.” A consequência desse ambiente cada vez mais acirrado é a progressiva perda de capacidade de diálogo. “Quando não há amizade, não há república”, diz Romano. E cita uma passagem de Platão para retratar o atual momento político do País: Não existe Estado (pólis) se nele as dores e alegrias dos indivíduos não forem as dores e alegrias do coletivo e vice-versa. “O momento, portanto, é de encontrar alguma racionalidade no meio da loucura.”