Neste segundo dia da série "Dossiê Sudene", o JC mostra que o mais duro dos generais-presidentes do regime militar, Emílio Garrastazu Médici – consternado com o flagelo social provocado pela seca de 1970, depois de percorrer o semiárido de Estados da Região – , aponta a responsabilidade de políticos e da indústria da seca, preservada para apropriar-se de recursos da Sudene em proveito eleitoral e enriquecimento.
“Vi o sofrimento e a miséria de sempre; vi a paisagem árida, as plantações perdidas, os lugarejos mortos; vi os postos de alistamento com multidões famintas e angustiadas. Falei a êsse flagelo. Vi seus farrapos, apertei a sua mão, vi o que comia...”. No dia 6 de junho de 1970, em pleno tormento da seca, depois de percorrer parte do semiárido de Estados nordestinos, o general gaúcho Emílio Garrastazu Médici – presidente do País no período mais violento da ditadura de 1964 –, falava aos governadores nordestinos e conselheiros na Sudene, narrando impressionado o que os seus olhos nunca tinham visto.
A abertura do discurso – de aparente consternação – foi o preâmbulo para um ataque rancoroso a políticos e empresários que reproduziam a “indústria da seca” para enriquecer, utilizavam recursos da Sudene em corrupção e desvios. Ao encerrar a 25ª Reunião Extraordinária do Conselho de Desenvolvimento Econômico da Sudene, na sede do órgão, Edf. JK, antigo INPS, na Av. Dantas Barreto, o general Médici não perdoou a politicagem e indiferença: “É preciso que eu diga que houve quem aconselhasse a que não viesse ver”. E, indignado, revela ter recebido um conselho que o irritou: “a retirada, por decreto, das populações”. Seria um deslocamento para regiões úmidas do Maranhão e Centro do Brasil.
Um obcecado anticomunista, o general Médici não deixou de girar a metralhadora de críticas e condenações contra quem, segundo acusava, também se aproveitava do flagelo social causado pela seca para propagar ideias de subversão. “Só pensam em protestar para acederem a revolução social que nos iria desunir a todos”, afirma. A manifestação está registrada na ata da reunião do Conselho da Sudene daquele 6 de junho de 1970.
O presidente havia concluído um périplo pelo semiárido de Estados afetados por mais uma grande seca, fenômeno que mais uma vez estava sendo enfrentado com frentes de trabalho emergenciais. “Não se pode deixar as coisas como estão, é preciso corrigir desvios e distorções”, advertiu o general, antes de exigir austeridade e apelar à consciência nacional. “Tudo isso tem de começar a mudar. Exijo a contribuição da Nação inteira, exijo a austeridade de todos os homens responsáveis (...) Apelo à consciência nacional, para que todos os brasileiros sintam que o Nordeste não é um problema distante (...)”.
O discurso escrito do general-presidente que mais caracterizou a violência do Estado brasileiro no regime militar ocorreu em sequência ao discurso de abertura da sessão, feito pelo governador de Pernambuco, Nilo Coelho (Arena), em nome dos demais governadores da Região, que também seria marcante e corajoso, na medida em que acusou a existência de um processo de boicote à Sudene e preconceito com a Região. Nilo cobra do governo Médici uma posição de defesa e fortalecimento da Sudene, acusando regiões desenvolvidas e membros do Executivo de terem a intenção de esvaziar financeira e politicamente o órgão.
Entre um e outro pronunciamento, Médici cede a palavra ao ministro do Planejamento, João Paulo Reis Velloso, para que anuncie as medidas do governo de reforço ao enfrentamento da seca na Região. Nenhum projeto estruturador de grande porte é anunciado. As providências que seriam adotadas estavam divididas em dois grupos, um de ações imediatas e outros de médio prazo. De emergência, a manutenção das mais de 60 frentes de trabalho com 130 mil flagelados empregados (500 mil pessoas beneficiadas), a construção e recuperação de açudes, barragens e rodovias, abastecimento de alimentos e crédito agrícola. A médio prazo, agilizar projetos de irrigação, desenvolver tecnologia de precipitação de chuvas artificiais e colonização de vales úmidos do Nordeste, Planalto Central e Maranhão, um Estado que ainda era pouco povoado.
Onze anos antes daquele discurso consternado do presidente Garrastazu Médici com o quadro social e indignado com políticos e “industriais da seca”, que marcou a 25ª Reunião da Sudene, em 1970, o primeiro superintendente, Celso Furtado, havia enfrentando a resistência de políticos para criar a instituição destinada a planejar o desenvolvimento da Região. A decisão política do presidente Juscelino Kubitschek, um mineiro, impediu a inviabilização da Sudene. Uma ameaça ao coronelismo. Políticos temiam a perda dos currais eleitorais e do secular assistencialismo da União. O órgão prometia ser a redenção do Nordeste, abolindo a pobreza pela industrialização e desenvolvimento econômico.