Seis foram os prefeitos do Recife durante os anos de ditadura militar no Brasil. Desses, três comandaram a cidade no período mais duro do regime autoritário iniciado em abril de 1964. O paraibano Augusto Lucena foi o primeiro deles a chegar ao poder e lá ficou até 1969. Sentou na cadeira de prefeito por ser vice de Pelópidas Silveira, que teve seu terceiro mandato abreviado com a cassação política. De 1971 a 1975, Lucena foi prefeito novamente, mas como uma escolha do interventor estadual. Geraldo Magalhães (69-71) e Antônio Farias (75-79) também tornaram-se gestores da capital pernambucana sem passar pelo voto popular.
O elo com os militares não era a única ligação entre os governos Augusto Lucena, Geraldo Magalhães e Antônio Farias. Eles deram novos traçados ao Recife a partir da abertura de novas avenidas e da construção de viadutos. “Passa-se a ser desenvolvida uma política de intervenções para modernizar o espaço urbano do Recife com um um conjunto de obras viárias. O Brasil vivia a emergência uma de uma sociedade de consumo em que o maior símbolo era o carro”, enfatiza o historiador Luís Manuel Domingues, autor de estudos sobre transformações urbanas pelas quais o Recife passou no regime militar.
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O pesquisador afirma que o poder local repetia parte do autoritarismo do governo federal. “A sociedade não era escutada. Eram decisões tecnocratas, tomadas de dentro do gabinete”, diz. Ele conta que esse modelo norteou a execução das obras viárias. “As pessoas eram retiradas de suas casas e jogadas nos habitacionais da vida. A construção da Agamenon Magalhães é bastante problemática. A construção do viaduto da Avenida Norte gerou a falência de negócios”, declara.
Quem acompanhou de perto a gestão de Augusto Lucena, Geraldo Magalhães e Antônio Farias tem uma visão distinta. “Lucena não era de esquerda ou de direita. Era autêntico, construiu avenidas importantes e muitas moradias. Foi o melhor prefeito do Recife, mas não teve esse reconhecimento”, aponta o jornalista Samir Abou Hana, que foi secretário de imprensa do ex-prefeito.
Roberto Magalhães, ex-prefeito e irmão de Geraldo Magalhães, minimiza o fato do familiar não ter sido eleito pelo voto. “Naquele tempo os militares estavam em alta. Foi um prefeito atuante e inovador. Construiu um ginásio de esportes (o Geraldão) e os dois primeiros viadutos do Recife”, relata.
A viúva de Antônio Farias, Geralda Farias, conhecida por ações sociais no Recife, também defende o legado do marido. “A maior preocupação dele era com o lixo e a limpeza de canais. Um ambientalista à frente do seu tempo. Valorizou o funcionário público e estava sempre na rua, mas era a criatura mais discreta deste mundo”, garante. O ex-secretário de Obras de Farias, o engenheiro Gabriel Bacelar, vai na mesma linha. “O prefeito sabia administrar e era de excelente aceitação”, pondera.
CONSTRUÇÃO DE AVENIDAS, VIADUTOS E A CHEIA DE 75
Os recursos públicos municipais foram amplamente utilizados nos anos de 1960 e 1970 para a construção ou melhoria de avenidas que hoje fazem parte do dia a dia do recifense. São dessa época o surgimento das avenidas Agamenon Magalhães, Domingos Ferreira, Abdias de Carvalho, Antonio de Goés, Recife e dos primeiros viadutos da capital.
Principal ligação entre Olinda e a zona sul do Recife, a avenida Agamenon Magalhães surgiu no governo Augusto Lucena. Foi ele também o responsável pelas obras que resultaram nos contornos finais - e polêmicos - da avenida Dantas Barreto, aberta inicialmente pelo antecessor Pelópidas Silveira.
Geraldo Magalhães aproveitou o tempo em que ficou à frente do Recife, um ano e 11 meses, para empreender a urbanização da rua da Aurora, a construção de dois viadutos por cima da Agamenon Magalhães e outras transformações na cidade . “Do Cabanga até o Cais de Santa Rita, ele fez aquilo que denominei de Complexo Viário das Cinco Pontas. Duplicou a avenida José Estelita, que tinha só uma faixa, construiu o viaduto das Cinco Pontas e alargou uma parte da avenida Sul”, relata o historiador Luís Manuel Domingues.
Para o pesquisador, o viaduto das Cinco Pontas foi pensado de maneira pouco funcional. “O viaduto mais se assemelha à décima letra do alfabeto grego, a lambda, em sua forma minúscula e numa posição invertida. Isso significa que um dos sentidos da pista se inicia em um grau de 45 graus para terminar em uma curva de 90 graus, em extensão de cerca 500 metros, com uma outra pista em curva acentuada. Isso favorece que possam ocorrer alguns acidentes”, analisa.
O legado de Antônio Farias é lembrado por seu ex-secretário municipal de Obras, o engenheiro Gabriel Bacelar. “A gestão dele foi uma das em que se fez o maior volume de obras do sistema viário. Com um ano de gestão, fizemos a avenida Recife”, assegura.
A gestão Antônio Farias foi marcada pela “cheia de 1975” como passou para a história a enchente do rio Capibaribe que cobriu 80% do território do Recife e resultou em uma centena de mortos e um rastro de destruição lembrado até hoje. “Foi um verdadeiro trauma na cidade”, diz Gabriel Bacelar. Ele garante que o prefeito não mediu esforços para dar respostas aos moradores. “Ele não ficou apenas no gabinete e visitou os locais mais críticos. Foi preciso muita ação de pavimentação”, garante.
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Coube a Antônio Farias finalizar a construção do prédio que hoje abriga a prefeitura, projeto inicialmente tocado por Augusto Lucena. Esse, por sua vez, criou a Companhia de Habitação do Recife, a Empresa de Urbanização do Recife (URB) e a Fundação Guararapes, voltada ao ensino primário. Ele também implantou um sistema de iluminação a vapor de mercúrio e investiu na construção de casas populares.
Geraldo Magalhães construiu o principal ginásio de esportes do Recife, que hoje leva o seu nome. Popularmente conhecido como Geraldão, o equipamento está em obras desde 2013.
CONSTRUÇÃO DA AVENIDA DANTAS BARRETO GERA POLÊMICA
A abertura da avenida Dantas Barreto foi iniciada pelo prefeito Pelópidas Silveira, mas as polêmicas que envolvem a avenida rementem à gestão Augusto Lucena. Prefeito do Recife em duas ocasiões, ele rasgou o centro da cidade para que garantir a via como uma ligação até a Zona Sul da capital.
As obras para a construção da Dantas Barreto levaram à destruição de ruas, travesas, casas populares e de duas igrejas (Paraíso e Martírios). “As opiniões sobre a destruição da igreja se dividiram durante os anos de abertura da Dantas Barreto. Acredito que aqueles que defendiam a sua permanência fossem mais numerosos, ainda que os jornais manipulassem essa informação. Uma carta anônima enviada em agosto de 1971 ao Diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico de Pernambuco endossou a responsabilidade do então prefeito Augusto Lucena na condução das obras”, destaca a arquiteta Rosane Piccolo, autora do livro Paraíso & Martírios: histórias de destruição de artefatos urbanos e arquitetônicos no Recife.
Para Rosane, a cidade ganhou uma nova avenida e perdeu para sempre parte de sua memória. “A abertura da avenida representa uma triste página na história da vida do Recife, marcada pelo autoritarismo, pela ausência de diálogo e pela desconsideração dos velhos trechos da cidade. A destruição dos Martírios representa uma ‘herança às avessas’ legada aos pernambucanos, tendo em vista os interesses que se colocaram por determinadas instituições ou grupos. Seu aniquilamento foi especialmente impulsionado por motivações de ordens político-institucionais, por vezes encobertas sob o véu dos atos técnicos ou administrativos”, avalia.
A arquiteta Virgínia Pontual também critica o projeto de Augusto Lucena. “Não havia mais sentido abrir a Dantas Barreto, mas ele insistiu porque queria reproduzir a avenida como um boulevard parisiense. Imaginem só”, condena.
Ex-secretário de Imprensa de Augusto Lucena, o jornalista Samir Abou Hana defende o ex-chefe. “Não tinha como segurar a igreja dos Martírios. O prefeito recebeu o apoio de muitas pessoas para fazer a avenida. Entre elas, o escritor Gilberto Freyre”, recorda.