"Recife sem mordomias"

"Nada muda na política sem pressão social"

Livro da jornalista Claudia Wallin mostra a realidade da Suécia, onde políticos andam de ônibus, de trem, a pé ou de bicicleta. Vereadores sequer recebem salários

Ciara Carvalho
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Ciara Carvalho
Publicado em 13/10/2019 às 8:58
FOTO: FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
Livro da jornalista Claudia Wallin mostra a realidade da Suécia, onde políticos andam de ônibus, de trem, a pé ou de bicicleta. Vereadores sequer recebem salários - FOTO: FOTO: FILIPE JORDÃO/JC IMAGEM
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À luz da realidade brasileira, o livro da jornalista Claudia Wallin parece até peça de ficção. “Um país sem excelências e mordomias”, lançado em 2014, fala de um lugar real, onde políticos andam de ônibus, de trem, a pé ou de bicicleta. Vereadores não recebem salários. Deputados não têm assessores pessoais pagos pelo poder público, motoristas, carros oficiais ou verbas extras. Este país existe. É a Suécia. Mas não existe, dessa forma, por passe de mágica. “Eles foram aperfeiçoando a democracia, à base de muita atuação popular. Não era assim. Tornou-se assim.” De passagem pelo Recife, Claudia, que mora em Estolcomo, deu entrevista ao JC. No meio da conversa, fez uma pergunta: “O que é o auxílio-paletó?” Após ouvir a explicação, a reação foi imediata. “Isso, para os suecos, chega ao nível do incompreensível. Do inacreditável.”


JC - Qual a importância de uma iniciativa como a da campanha “Recife sem mordomias” para a melhoria do nosso processo democrático?
CLAUDIA WALLIN - Primeiro, é muito importante não demonizar a política. Porque existem políticos que trilham o caminho da ética. E porque a política é a base da democracia. É com a política que a gente vai fazer a transformação. Nesse sentido, a iniciativa é excelente, é mais um exemplo de que as coisas podem ser transformadas em nível regional. Você pode exercer o controle social na sua cidade e começar a mudar práticas que estão próximas de você.

JC - Essa interferência em nível local aproxima a nossa realidade dos resultados que foram obtidos na Suécia? Em que essas iniciativas pontuais ajudam na construção de um futuro de País mais austero?
CLAUDIA - É preciso dizer que todas as mudanças que acontecem numa sociedade nunca são dadas, elas são conquistadas. A gente olha para a Suécia, com grande admiração, mas aquilo não nasceu do dia para a noite. Eles foram aperfeiçoando a democracia aos poucos, à base de muita atuação popular. Não era assim. Tornou-se assim. E, quando a gente fala de dimensões, a população da Suécia tem 10 milhões de pessoas, o mesmo contingente do Estado de Pernambuco. Então, você pode adotar iniciativas de mudança em nível regional. O mais importante é envolver as pessoas. Se a gente lembrar, até um tempo atrás, era normal um vereador andar de carro oficial, com motorista, e isso não é mais aceito. Então o nível de consciência está avançando. As pessoas se sentem desrespeitadas, porque todo privilégio que um político tem é pago com o dinheiro dos impostos arrecadados do cidadão. Ou seja, você está pagando para um cidadão, igual a você, ter um nível de privilégios que você não tem. Alimentação gratuita é um absurdo. Se você fala isso para um sueco, ele fica perplexo. Como assim? Comer às custas do dinheiro do contribuinte? Isso não existe.

JC - O primeiro passo, então, é parar de normalizar esses benefícios, a exemplo do auxílio-paletó?
CLAUDIA - O ponto número um é ter consciência de que eles são um absurdo. O segundo passo e o mais importante é a atuação das pessoas, no sentido da mudança. Porque não será mudado pela vontade de poucos, isolados. Existe muita gritaria nas redes sociais. É importante, mas isso sozinho não resolve. Tem que ter um movimento organizado, concreto, de iniciativa popular, a exemplo dessa campanha. É isso o que vai mostrando aos políticos que defendem os próprios privilégios que isso não é mais uma coisa aceitável. Ele precisa saber que não será reeleito se continuar defendendo isso. Não é normal. Os tempos são outros. É preciso se perguntar: por que esse nível de privilégios? O conceito de vereador, na Suécia, é o de uma atividade voluntária, exercida em paralelo ao trabalho regular da pessoa. Ela tem seu próprio emprego, de onde tira o sustento, e se envolve na atividade política como forma de participar das decisões que afetam a sua comunidade.

CLAUDIA - A propósito, só uma pergunta: o que é o auxílio-paletó?

JC - É um salário a mais pago ao parlamentar. Ganhou esse nome porque muitos argumentavam que o dinheiro ajudava, inclusive, a comprar roupas. Ele recebe no primeiro e no último mês da legislatura.

CLAUDIA - Isso, para os suecos, chega ao nível do incompreensível. Do inacreditável. O único benefício que o parlamentar sueco recebe é um cartão para ele usar os transportes públicos. E que tem que ser usado exclusivamente para isso. Se não, vira um escândalo. Como aconteceu recentemente, quando um deputado usou em benefício próprio as milhagens do cartão para comprar um saco de amendoim, uma garrafa d’água e oito bilhetes de trens para uso pessoal. Virou manchete de jornal.

ESPERANÇA DE MUDANÇA

JC - Apesar de descrever uma realidade extremamente distante, do ponto de vista da práticas políticas, você têm esperança de ver essa postura de austeridade com o uso do dinheiro público reproduzida no Legislativo brasileiro?
CLAUDIA - Com certeza. O que a Suécia mostra para nós é uma sociedade possível. Não é uma coisa utópica, que não possa existir. Não. Ela existe. Está lá. Se você pega os vizinhos nórdicos, eles têm sistemas semelhantes. Chegaram lá através do seu próprio processo de aperfeiçoamento democrático. A Suécia não nasceu uma sociedade perfeita, é um país onde a polícia já atirou em grevista, no século passado. Hoje seria impensável isso voltar a acontecer. Então, é um exemplo de que lá também já teve outra realidade, que foi sendo transformada. Democracias se aperfeiçoam. Obviamente o Brasil também vai chegar lá. Não é um processo rápido. Mas começa com gestos como esse, que questionam os gastos na Câmara dos Vereadores do Recife. É preciso acreditar e agir. Porque nada vai mudar sem o envolvimento e a pressão popular.

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