Lá onde eu moro

Os encantos do Poço da Panela

Escritora Luzilá Gonçalves fala de sua vida no bairro. Onde a Igreja é o Centro, os vizinhos se conhecem e Seu Vital sempre quebra o galho

Manuella Antunes
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Manuella Antunes
Publicado em 10/03/2012 às 18:30
Foto: Flora Pimentel/JC Imagem
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“Oi, Ricardo”, acena a escritora Luzilá Gonçalves. “Vai precisar de táxi hoje?”, retruca o motorista. “Boa tarde”, Luzilá cumprimenta um homem que água as plantas da rua. No bairro que mais parece uma pequena cidade de interior, os velhos moradores se conhecem pelo nome e sobrenome. Sabem das histórias uns dos outros. Se reúnem na igreja aos domingos. Trocam pratos de canjica no São João. Por lá, a vida segue mansa. Na entrada do Poço da Panela, Zona Norte do Recife, ainda vê-se cidade. No meio do caminho, ruas de paralelepípedo, brisa e muito verde. No fim, perto do rio, lá por trás – onde quase ninguém vai – o cheiro é de fazenda. O clima é de sítio. Pense num lugar arretado esse que é o tema da segunda reportagem da série Lá onde moro, sobre bairros do Grande Recife.

Em suas caminhadas diárias, a escritora faz sempre o mesmo percurso. Sai de sua residência, um casarão da época em que o bairro foi fundado, caminha por várias ruas até chegar ao largo da igreja, onde, em frente, está a famosa venda de Seu Vital. “Ando 45 minutos. Não é isso que recomendam?”

O passeio com a equipe de reportagem durou um pouco mais. Luzilá carrega a responsabilidade de apresentar o bairro que habita há 40 anos. “Vim para cá dois anos depois que me casei, em 1968. Sempre vivi na mesma casa que, no passado, foi do Barão de Utinga.” Luzilá explica que o Poço da Panela era o lugar onde os donos de engenho tinham suas residências no Recife, além de ser o preferido pelos estrangeiros que cá vinham fazer morada. “Nesse último caso, o clima era fator decisivo. Aqui, temos três graus a menos do que no resto da cidade”, revela.

E para provar a teoria, Luzilá aponta nossa primeira parada – na Estrada Real do Poço, principal via do bairro. Um casarão enorme – hoje habitado pelo usineiro Miguel Petribú – que já foi residência de grandes nomes. “Esse lugar foi lar de dois desenhistas austríacos, Carls e Schlappritz, responsáveis pela obra "Álbum do Recife". Naquela época não se tinha acesso a fotografia e eles desenharam e pintaram o Recife. Tornou-se um registro histórico”, conta Luzilá. Ela também revela que nesta mesma casa morou o vitralista Moser. “Ele fazia um trabalho belíssimo. Aliás, um de seus vitrais está no Palácio do Campo das Princesas.”

Foto: Flora Pimentel/JC Imagem
Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Flora Pimentel/JC Imagem
Foto: Igo Bione/JC Imagem
Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Igo Bione/JC Imagem
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Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Igo Bione/JC Imagem
Foto: Flora Pimentel/JC Imagem
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Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Igo Bione/JC Imagem
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Foto: Igo Bione/JC Imagem
Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Igo Bione/JC Imagem
Foto: Flora Pimentel/JC Imagem
Série Lá onde eu morro... imagens do Poço da Panela - Foto: Flora Pimentel/JC Imagem

Muro com muro está a casa onde morou o poeta Maciel Monteiro. “Ele dizia que tinha os dedos calosos de tanto levantar saia de mulher casada”, ri a escritora. O passeio segue, passando pelo busto de Mano Teodósio, grande boêmio morador do bairro que faleceu cedo. Não foi esquecido. A homenagem está lá.

Seguindo o caminho da igreja, avista-se uma pracinha. Campo, parquinho. Logo se nota: trata-se de algo novo. “Lutamos que nesse espaço fosse feito o posto de saúde, mas agora que praça está pronta, achei bom. A meninada precisa disso mesmo.” Da nova praça, avista-se a Igreja Nossa Senhora da Saúde, local de encontro dos vizinhos.

“Não sou católica, não frequento, mas a missa dominical é um momento onde todo mundo se encontra. O mais legal é que tem os dias de festa. Nesses momentos eu participo.” Ela cita a "Paixão de Cristo" que antigamente era organizada pelos moradores e a Festa de Nossa Senhora da Saúde, dia 2 de fevereiro.

“Durante uma semana tem a festa, eles buscam a santa, levam para a matriz de Casa Forte, e, depois, quando ela volta, traz a bandeira com a imagem da Nossa Senhora, que é muito antiga. Então, o mastro é hasteado e os fiéis ficam esperando para ver pra que lado ela se movimenta. Se for o lado do rio é porque vai ter cheia”, conta, rindo.
Em frente ao templo, a tradição da boemia. Uma das vendas mais conhecidas do Recife, a do Seu Vital é como um patrimônio do bairro. “Lá tem de tudo. Sempre que falta alguma coisa em casa de urgência, passo aqui”, conta Luzilá.

Se dentro é mercearia, fora a bodega é um bar improvisado. Ao cair da noite, as mesinhas saem, os frequentadores assíduos começam a chegar. A cervejinha gelada, é claro, também tem seu lugar garantido. Seu Vital é tímido, homem de poucas palavras, não é de jogar conversa fora com qualquer um. Já para o papagaio Dudu difícil mesmo é fechar o bico. Diz oi, dá tchau, assobia para as moças. Pense num bicho assanhado, bem-cuidado e feliz. É o queridinho do Poço.

O que divide o título de mais querido do bairro com Dudu é a nova biblioteca do bairro. Idealizada pelo escritor e jornalista Samarone Lima e por seu parceiro de empreitada, conhecido no Poço como Naná, o espaço conta, hoje, com mais de três mil obras e 130 crianças inscritas. “É uma construção nossa. O aluguel é arrecadado entre os amigos de Sama e é Naná quem organiza as coisas”, conta Luzilá.

A área onde foi instalada a biblioteca é a maior surpresa do passeio. Perto da casa, o campo de futebol do Sr. Abdias, margeado pelo Capibaribe, faz a alegria de um grupo de jovens que, rindo, tentam tirar a bola que ficou presa nos galhos de uma árvore. Eles conseguem recuperar o objeto e a pelada corre. Pertinho, há vacas, cavalos, galos, galinhas, um burro e muitas plantas. O cheiro é de sítio. A sensação é de paz. De lá, vale ver o pôr do sol que, refletido no rio, é um show à parte.

“O Poço é um bairro de verdade, sabe? O Recife tá perdendo isso. Para mim, bairro é o lugar onde as pessoas se conhecem, se cumprimentam, fazem compra na venda. É união, é como uma grande família. E isso a gente tem aqui”, afirma a escritora.

MISTÉRIO NO POÇO
- O ar bucólico do Poço, além de tranquilidade, traz à tona coisas mais obscuras: fantasmas. Quem garante é Luzilá. “Ver eu nunca vi, mas com certeza tem. É um bairro muito antigo e as histórias são muitas, sabe?”

As histórias começam lá mesmo na casa dela. “Tive uma vez uma secretária que disse: ‘D. Luzilá, tem uma velha sentada na minha cama’ De tanto medo, a bichinha foi embora de volta pra Limoeiro. Tempos depois, recebi outra que me contou a mesma história e também desistiu do emprego”, conta, rindo.

Curiosa, questiono: “Você nunca teve medo?” Luzilá, de pronto, retruca: “Eu não. Queria era ver. Acho até bom que tenha uns fantasmas por aqui. Me incomodo não. Eu mesma, se morrer e voltar pra cá vou achar bom.”E assim, entre a tradição das quermesses e a venda de Vital, a amizade dos vizinhos e os fantasminhas legais a vida segue no Poço da Panela.

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