SAÚDE

A cruz do sacerdócio

Ouvir confidências, fazer celebrações e administrar a paróquia são atribuições dos religiosos, que também são alvo de estafa, termo popular que define a síndrome de burnout

Cinthya Leite
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Cinthya Leite
Publicado em 23/03/2013 às 12:00
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Na última audiência geral como pontífice, o alemão Joseph Ratzinger, 85 anos, justificou a decisão de renunciar ao alegar que suas forças tinham diminuído nos últimos meses. Na mesma ocasião, ele lembrou que, ao ser eleito em 2005, sentiu um peso sobre os ombros, mas pediu luz a Deus. “Aceitei e sempre tive a certeza de que Ele me acompanhou”, afirmou Bento XVI, que recordou o que pensou ao ser escolhido pela votação, há quase oito anos: “Senhor, por que me pedes isso? É um peso grande sobre os meus ombros. Aceitarei apesar de todas as minha fraquezas”, disse Bento XVI, na celebração, em 27 de fevereiro.

A renúncia diante de uma Igreja Católica rodeada por escândalos de corrupção e casos de pedofilia leva a crer que a tarefa de liderar a comunidade dos cristãos é acompanhada de uma responsabilidade imensa e de atribuições que podem deixar a vida sacerdotal mergulhada num desgaste excessivo. Esse cenário estimula os especialistas a chamarem atenção para o fato de que os sacerdotes formam um grupo extremamente vulnerável à síndrome de burnout – o que, na linguagem popular, é equivalente à estafa.

Essa situação de desgaste é entendida como um problema de saúde em que se manifestam cansaço físico e emocional, além de baixa autoestima, especialmente em quem trabalha prestando serviço a outras pessoas. “A síndrome de burnout é uma ameaça para os sacerdotes que lidam frequentemente com as múltiplas exigências do povo, as condições peculiares do estilo de vida que possuem e até a experiência de solidão nas paróquias”, ressalta a pesquisadora Helena López de Mézerville, que desenvolveu tese de doutorado, pela Universidade de Salamanca (Espanha), sobre o problema no âmbito religioso.

Para o trabalho, ela contou com a colaboração de 881 sacerdotes de dioceses do México, da Costa Rica e de Porto Rico. Essa amostra, segundo ela, reflete a mais ampla realidade sacerdotal investigada até então. Eis os resultados da pesquisa: apenas 9% dos religiosos entrevistados não se encontravam esgotados. “Em síntese, três em cada cinco sacerdotes experimentavam graus médios ou avançados da síndrome do esgotamento ou burnout”, escreve Helena, que transportou as observações do seu trabalho para o livro O desgaste na vida sacerdotal – prevenir e superar a síndrome de burnout (Editora Paulus, 184 páginas, R$ 25), lançado recentemente no Brasil.

Por aqui, especialistas também se debruçam sobre a questão. Psicólogo mineiro, William Cesar Castilho Pereira dedica-se ao exercício de pesquisador em institutos de filosofia e teologia há mais de três décadas. Essa trajetória o levou a escrever o livro Sofrimento psíquico dos presbíteros – dor institucional (Editora Vozes, 544 páginas, R$ 52,90), que chegou às livrarias em 2012.

“A síndrome de burnout pode atingir todos os profissionais que interagem afetivamente com as pessoas, que cuidam e solucionam problemas delas”, diz William, que é doutor e professor da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). “No caso da vida sacerdotal, os padres costumam ter um trabalho acolhedor do sofrimento dos outros. Dessa maneira, eles podem sentir dor intensa diante dos problemas trazidos pela população que atendem.”

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Síndrome de burnout e a vida sacerdotal

A consequência de toda essa aflição pode vir traduzida, segundo o psicólogo, em desânimo, desilusão e descrença na vocação. “Isso afeta, deprime, entristece e pode levar o padre a ter um alto índice de agressividade com ele e com os outros”, alerta William.

O padre Antônio Raimundo Sousa Mota, 59, sente ainda o peso da responsabilidade de ter que amenizar o sofrimento alheio. “Muita gente não tem acesso aos psicanalistas e chega aos sacerdotes também para procurar acolhimento. Como nós, religiosos, somos também pastores, acabamos tendo aproximação afetiva com as pessoas”, relata.

Para ele, muitos sacerdotes entram num ciclo contínuo de desgastes por causa do acúmulo de tarefas. “Temos atribuições administrativas e acadêmicas, além da função pastoral. “Escrevemos, estudamos, ministramos aulas, pesquisamos e ainda acolhemos com bastante prazer as famílias. É preciso ter essa missão muito bem organizada para não cair na síndrome de burnout.”

Com uma bagagem de 37 anos na congregação Companhia de Jesus, padre Mota relembra que já passou por períodos de estafa devido a problemas de família. O pior momento foi há quase 15 anos, quando o pai faleceu repentinamente. “Eu estava fazendo doutorado em Roma, num ritmo muito intenso de estudos, quando recebi a notícia. Foi péssimo. Vim para o Brasil às pressas e voltei para Roma com uma sensação muito ruim. Fiquei esgotado emocionalmente”, conta.

Graças ao poder da resiliência (capacidade de se adaptar a situações estressantes), ele conseguiu superar essa fase delicada. Hoje, para viver em equilíbrio, recorre a estratégias e a atividades relaxantes, como praticar pilates, ouvir música clássica, procurar dormir bem, rir, contar piadas e cultivar boas amizades.

“Diante de um período difícil e de sofrimento, a gente pode até se sentir desgastado, mas o sabor de fazer o bem e crescer com os outros é um grande incentivo”, diz.

Essa realização pessoal, mencionada pelo padre Mota e desfrutada por outros sacerdotes em suas responsabilidades pastorais (sobretudo no trabalho paroquial), representa para muitos deles uma compensação altamente gratificante – fato que os ajuda a superar esses tempos de esgotamento psíquico.

“Isso os previne de ser vítimas da síndrome de burnout”, frisa o psicólogo Gaston de Mézerville, em apresentação que faz no livro da terapeuta Helena. Quem tem a mesma impressão é o frei Rinaldo Pereira dos Santos, 41, da Paróquia São Paulo Apóstolo, no bairro de Jardim São Paulo. “Diante de todos os desafios da missão sacerdotal, é sempre bom os padres pensarem que vale muito a pena ser feliz naquilo em que se dispõem a fazer. Isso dá vigor em muitos momentos.”

Ele concorda que a atividade presbiteral pode favorecer a síndrome de burnout, especialmente quando o religioso se esquece de que também é gente. “Quando não consideramos isso e nos lançamos de forma desenfreada no trabalho, pode vir o esgotamento.”

Na opinião de frei Rinaldo, o imaginário popular ainda alimenta a ideia de que o sacerdote é como um super-herói, que nunca se cansa. “Mas temos um leque imenso de atribuições para as quais até nem fomos totalmente preparados”, afirma.

Com base em levantamentos atuais, ele reforça que há no mundo 1,2 bilhão de católicos para 413 mil sacerdotes e 5.110 bispos. “Somos responsáveis por um universo imenso de pessoas”, diz o frei, para mensurar como é delicado enfrentar o desafio pastoral. “Me dói saber que existem muitas pessoas às quais não consigo ter acesso. E ainda há questões administrativas difíceis que precisam ser superadas para realizarmos projetos em prol da comunidade. Graças a Deus, estamos cercados de pessoas que nos ajudam na paróquia.”

Com muita serenidade, frei Rinaldo diz que está sempre atento para não desenvolver a síndrome de burnout. “Às vezes, me sinto esgotado e cansado, como qualquer outra pessoa cheia de atribuições comuns a várias profissões. Quando isso acontece, dou uma pausa para cuidar de mim. Reconheço quando chego ao meu limite e respeito as minhas férias de 30 dias. E adoro escrever poesias para relaxar”, conta o religioso.

Assim como frei Rinaldo, o padre Valdir Manuel dos Santos Filho, 38, recorre a estratégias e orações para não entrar em desgaste. “Temos tantos afazeres, que realmente precisamos ter cuidado para não desenvolver a síndrome de burnout. Estou procurando me alimentar melhor e me exercitar mais, fazendo mais caminhadas”, conta o sacerdote.

Ele ressalta que, dentro da missão sacerdotal, o que mais o sensibiliza é o sacramento da confissão. “Mas não é um momento de terapia; o confessionário não é um divã. É uma ocasião em que o padre está em nome de Deus para absolver os pecados e acolher a pessoa, que procura um conforto espiritual”, diz Valdir, que estuda, prepara e ministra aulas, abraça os trabalhos da paróquia e do tribunal eclesiástico. “E não deixo de lado as atividades de oração, que fazem muito bem.”

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