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Salve a cabidela

Chefs querem derrubar a lei de 1952 que proíbe, entre outros, o tradicional prato

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 21/09/2012 às 8:15
Igo Bione
Chefs querem derrubar a lei de 1952 que proíbe, entre outros, o tradicional prato - FOTO: Igo Bione
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Semana passada, sociólogos, pesquisadores e alguns dos mais renomados chefs do Brasil subscreveram um documento endereçado à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) e ao Ministério da Agricultura. Batizado de Manifesto Cozinhista Brasileiro, a petição pública lançada pelo caderno Paladar, do jornal Estado de S.Paulo, responsável por um grande congresso anual de gastronomia, tem como objetivo pedir a revisão de leis e normas sanitaristas que impedem, do ponto de vista legal, práticas tradicionais da cozinha brasileira. César Santos, Mônica Rangel, Alex Atala e o professor Carlos Alberto Dória, para citar alguns, engrossam o movimento. Querem tirar da ilegalidade algumas peças basilares da cultura gastronômica brasileira.

Se aplicada, a legislação proibiria artigos enraizados nos hábitos locais. Sabe aquela opulenta, sedosa e afetiva galinha de cabidela que comemos com a família no final de semana e nos restaurantes de Pernambuco – dos mais populares aos mais sofisticados? É, do ponto de vista da lei, absolutamente clandestina. “A lei não permite o comércio de sangue para uso culinário. Sangue é dejeto”, afirma, categórico, Ednaldo Siqueira de Lima, chefe de fiscalização animal da Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco.

O Ministério da Agricultura e Produção Agropecuária já garantiu que vai rever pontos da legislação sanitarista brasileira, embora não informe prazos nem detalhes. Isso porque a produção alimentícia artesanal brasileira ainda é regida por um decreto assinado por Getúlio Vargas em março de 1952.

O Regulamento da Inspeção Industrial e Sanitária dos Produtos de Origem Animal (também conhecido como Riispoa), tem mais de 900 artigos. Tanto a grande indústria quanto o pequeno produtor esperam pela atualização das normas. Mas é o pequeno produtor artesanal o mais prejudicado. Na prática, sem selo de inspeção federal, não consegue fazer seus produtos chegarem ao varejo.

“Quando houver a revisão das leis, a produção mais artesanal brasileira vai, finalmente, chegar ao varejo”, diz Paulo Lima, diretor nacional de Conceito, Inovação e Mercadorias da rede de supermercados Pão de Açúcar. Ele diz que o consumidor está ansioso para ver o Brasil nas prateleiras: “Quando nós vendemos queijo do Serro em São Paulo, vendemos mais de cem peças em apenas dois dias”. Para ele, a Riispoa está obsoleta. “É algo de 1952. Como pode dar conta da realidade de hoje?”, questiona.

“O que temos é a nossa agrobiodiversidade culinária e ela deve ser respeitada”, afirmou, em São Paulo, Alex Atala. 

Em São Paulo, já é praticamente impossível comer uma galinha cabidela. Restaurantes e bares são fiscalizados. Como não tem regulamentação federal para ser vendido como insumo culinário, o sangue fresco não pode ser comercializado. “Costumamos nos reunir para comer escondido o prato”, diz um chef, que pede anonimato. “Me sinto como na Chicago da lei seca. Em vez de álcool, escondemos o molho pardo”, diz.

Pernambuco segue a legislação federal. “Aqui, os abatedouros são quase todos ilegais e, por isso mesmo, fechados de vez em quando”, diz Ednaldo Siqueira de Lima, chefe de inspeção animal da Agência de Defesa e Fiscalização Agropecuária de Pernambuco. “Mesmo os abatedouros legalizados não podem comercializar sangue porque não existe como certificar o produto legalmente”, diz ele.

A fiscalização e aplicação da lei muda, portanto, de Estado para Estado. “Como aqui existe um consumo muito forte de vísceras e sangue, o consumo acaba tolerado por questões culturais”, diz ele, que afirma desconhecer algum caso de estabelecimento proibido de comercializar o prato.

Comenta-se que a Anvisa tende a flexibilizar a norma. Num simpósio recente, Denise Resende, gerente-geral de Alimentos da Anvisa, disse que a legislação federal pode ser completada e flexibilizada por leis estaduais.“A ‘gastronomia de faculdade’ hoje é toda diferente. Muito do que aprendemos já não pode mais”, afirma, crítico, o cozinheiro Geraldo Lima, um dos melhores praticantes da cozinha regional comercial no Recife.

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