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Na Antártida, o admirável homem das neves

Primeiro sul-americano a chegar esquiando ao Polo Sul, Alejo Contreras se dedica há 33 anos a desbravar o continente branco

Mona Lisa Dourado
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Mona Lisa Dourado
Publicado em 12/04/2014 às 14:01
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FOTO: NE10
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São 8h da manhã de um dia ensolarado do verão antártico. Os termômetros, generosos para o padrão polar, marcam +1ºC. Em frente à Baía Fildes, pinguins-papua distraem os marinheiros de primeira viagem em águas austrais. Na direção oposta, outro “espécime” nos chama atenção. Eu e o fotógrafo Igo Bione ficamos impressionados com a força daquele senhor de 1,80 m, que carregava tonéis de 200 litros com a naturalidade de quem arremessa uma peteca. A barba comprida e rala – meio ruiva, meio ocre – e a pele alva curtida pelo sol completavam o perfil de “abominável homem das neves”.

Ao abordarmos esse chileno de 56 anos, natural de Santiago, mal sabíamos que estávamos mesmo diante de um personagem mítico da Antártida. Mas que não tem nada de infame, que fique claro. A despeito dos traços rudes, talhados por ventos inclementes e temperaturas negativas, Alejo Contreras Staeding é de uma gentileza ímpar. Fala com voz mansa e o olhar profundo de quem tem muito a contar sobre os 33 anos que dedica a desbravar o continente branco. Se houvesse um Homo antarcticus por natureza, robusto e obstinado, Alejo seria sua perfeita materialização.

Rindo da minha comparação inusitada, embarca na brincadeira e começa dizendo que é sim um homem das neves, com direito a título acadêmico e tudo. “Sou nivólogo de cátedra.” Diante da minha mal disfarçada cara de interrogação, seguida de um “ãnham” ainda menos convincente, o entrevistado poupa uma “googleada” à repórter dos trópicos: “Nivologia é um braço técnico da geologia que ensina a calcular a quantidade de água no manto de neve e prever avalanches”, explica, com o entusiasmo daqueles que dominam como poucos o seu ofício.

Foi essa experiência que permitiu a Alejo realizar o maior sonho da sua vida e entrar para a história da Antártida. Ainda na adolescência, leu o diário do explorador inglês Robert Scott e decidiu: “Também vou ao Polo Sul esquiando”. Até se tornar o primeiro sul-americano a concretizar a façanha – entre novembro de 1988 e janeiro de 1989 – preparou ao longo dos anos mente e corpo para a empreitada. Não queria ter o mesmo destino trágico do aventureiro.

Scott e sua equipe morreram na viagem de regresso, depois de perder para o norueguês Roald Amundsen o título de primeiro homem a pisar no marco geográfico. Chegou ao Polo Sul em 17 de janeiro de 1912, um mês e três dias depois de Amundsen haver fincado sua bandeira por lá. “As pessoas diziam que eu era um louco de tentar algo assim, mas isso só me inspirava mais”, lembra Alejo. “Quando você tem um ideal e realmente trabalha por ele, nada é impossível”, continua, com um sorriso encorajador.

Pinguins-imperador dão as boas-vindas aos aventureiros -
Alejo Contreras foi o primeiro sul-americano a chegar ao Polo Sul esquiando -
Branco domina interior do deserto polar -
Alejo (E), também é pioneiro na América do Sul em atingir o cume do Monte Vinson (4.987 metros) -
Mesetas marcam a paisagem desse continente de 14 milhões de km² encobertos de gelo -
Colônia de pinguins-imperador no continente branco -
Alejo entre os imperadores do pedaço. Aventura está no DNA do nivólogo -
Antártida é o lugar mais seco e mais frio do planeta -
Colônia de pinguins-imperador -
Três guias e cinco turistas participaram da viagem ao Polo Sul entre 1988 e 1989 -
Um avião DC6-B e dois Twin Otter foram usados na expedição -
Nos 1.380 km que percorreram, aventureiros tiveram que carregar um trenó com 500 quilos -
Horizonte branco interminável foi maior dificuldade da viagem. "Um martírio para a mente", diz Alejo -
Viajantes esquiaram durante 67 dias -
No interior da Antártida, os raios ultravioletas são inclementes. Nem as bactérias sobrevivem ali -
Expedição custou US$ 500 mil -
Acampamento era montado no meio do gelo -
Rotina era "caminhar oito horas, comer oito horas e dormir oito horas", lembra Alejo -
No verão antártico, a noite é dia -
Alejo comemora aventura bem-sucedida -

O seu primeiro encontro com o continente gelado foi em 1980. Acabava de sair do colégio e havia se tornado um montanhista voluntário do Corpo de Socorro Andino do Chile. “Cheguei à base inglesa Rothera, no glaciar Wormald (Ilha Adelaide), e me lembro da emoção de estar pertinho de um pinguim-imperador. Ria e chorava ao mesmo tempo.”

De lá para cá, coleciona pioneirismos. Foi o primeiro alpinista da América do Sul a atingir o cume do Monte Vinson, o mais alto da Antártida (4.987 metros), onde voltou outras 16 vezes. Em todas elas, contou com a companhia do experiente piloto britânico Giles Kershaw, o primeiro a fazer um voo turístico ao Polo Sul, em 1987. Não por acaso, Alejo recorda a morte do amigo, ironicamente em um acidente aéreo, em 1991, como o momento “mais duro” vivido no continente branco. “Era um tipo alegre, simples, otimista e que tinha como filosofia de vida ‘don’t panic’ (não entre em pânico), ‘who cares’ (quem se importa), ‘whatever’ (seja o que for).”

O companheiro de aventuras foi essencial no sucesso da expedição de esqui ao Polo Sul. “Tudo o que fizemos antes serviu de treinamento, mas o grande desafio agora era obter os recursos de meio milhão de dólares para financiar a viagem e provar às autoridades chilenas que não correríamos riscos, sendo capazes de lidar nós mesmos com qualquer imprevisto”, detalha.

Demorou três anos e meio até conseguirem reunir as condições ideais à jornada. Cinco turistas pagaram US$ 100 mil cada um para viabilizá-la e um terceiro guia se integrou à expedição. Garantido o orçamento, Alejo e Giles puderam trazer do Canadá os três aviões necessários à travessia: um DC6-B para o translado entre a América e a Antártida e dois Twin Otter – um levaria o grupo ao local de partida, na costa do Mar de Weddell, e o outro permaneceria no acampamento de Patriot Hills, para emergências.

Na manhã do dia 2 de novembro de 1988, a comitiva inicia o trajeto histórico. Em meio ao deserto polar, os oito expedicionários enfrentam temperaturas médias de 14 graus abaixo de zero puxando um trenó de 500 quilos, carregado de comida (principalmente carboidrato e chá), barracas de camping e combustível. O clima, no entanto, não seria o maior desafio. “O mais difícil foi lidar com a paisagem monótona, era como caminhar em um interminável lençol branco, uma tortura para a mente”, descreve Alejo. A solução? “Concentrar-se na rotina: dormir oito horas, alimentar-se oito horas e esquiar oito horas.”

Nesse ritmo, percorreram 1.380 quilômetros em 67 dias. Em 7 de janeiro de 1989, Alejo e seus companheiros finalmente atingem o extremo sul da Terra, repetindo o feito heroico de seus ídolos. Desde então, o nivólogo regressou ao Polo Sul em mais 14 oportunidades, guiando outros idealistas como ele “ao mágico território dos sonhos cumpridos”.

Há 10 anos as estadas no continente gelado são cada vez mais longas. Agora, Alejo passa os seis meses inteiros do verão na Antártida. Na Baía Fildes, supervisiona as operações da Aerovías DAP, empresa chilena de logística e turismo antárticos. Para espantar a solidão, “cooptou” os dois filhos, o professor de esqui Benjamin, 26, e a socióloga Josefina, 23, para o trabalho no gelo. A mulher, Pía Ramirez, cuida da estação de esqui da família em Chillán, no centro-sul do Chile.

Com o gene da aventura no DNA, Alejo já planeja sua derradeira viagem. “A ideia é sair de Arica (norte do Chile) e cruzar o Pacífico a remo em direção à Austrália.” Cansou da Antártida?, pergunto. “De jeito nenhum. É só um desafio diferente. Logo volto para o frio”, garante. Homo antarcticus que se preze sempre retorna ao seu habitat.

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