Mulher de pelo menos três vidas em uma, Tereza Costa Rêgo estava especialmente incontida esta semana. Quando a encontrei, cara lavada, roupa de dormir ainda, café sobre a mesa, havia agitação demais para alguém que diz preferir a companhia dos bichos a de gente e se alimenta do silêncio matinal da casa antiga onde vive na Rua do Amparo, em Olinda. Prestes a completar 85 anos, dia 28 próximo, Tereza fecha e, imediatamente, abre um ciclo.
“Dormi muito pouco, estou preocupada com muitas coisas. Não quero festa”, dizia ela, enquanto assistia seus seis painéis serem embalados. Juntos, eles formam um quadro de impressionantes 15 metros de extensão por 2,60 de altura. Depois de mais de três anos debruçada, literalmente, sobre as pranchas, deu por concluído a obra Tejucupapo. “Houve dias em que eu pintava até o corpo doer, até não poder mais”, lembra ela, ansiosa e, ao mesmo tempo, serena por dar por completo o trabalho.
Os quadros foram transferidos para a sala com seu nome no Museu de Arte Contemporânea, em Olinda. “Como são muito grandes, pela primeira vez, vou poder ver o conjunto por inteiro. Quero muito mostrar a Zé Cláudio e Raul Córdula”, diz, sobre os amigos artistas. “Tenho certeza que nunca mais na vida poderei pintar um quadro tão grande”, reflete.
Como na obra de todo grande artista, os sentimentos em Tereza nunca são unidemensionais. Possuem camadas. Mesmo a morte, em suas figuras, traz uma trágica sensualidade subliminar. “A minha visão da morte é uma visão poética. Eu construo, com sangue, sempre uma história de amor”, diz ela. No painel, prevalecem seis grandes mulheres à frente e no meio de animais e figuras menores. Contam, à sua maneira, um dos episódios mais mitificados sobre a presença holandesa em Pernambuco. O fato, nunca comprovado, de que mulheres, armadas de utensílios de pesca e de agricultura, teriam expulsado os holandeses de um lugarejo de Goiana. Os homens estariam ausentes, negociando a produção agrícola nas cercanias. “Cresci ouvindo sobre isso”.
Se, no início, Tereza esperava ter apenas um grande painel, obra pensada para um museu em Brasília (“Não tenho um quadro importante na capital do País”), agora descobriu ter uma série. Uma grande série confundida com sua própria vida.
Testemunha e intérprete de seu tempo, Tereza Costa Rêgo se deu conta do óbvio: a história tem sido matéria-prima privilegiada de sua narrativa imagética. A ideia oi de Carla Valença, produtora da última mostra de Tereza Diários das frutas, composta de quadros em diálogo com crônicas escritas por mim em que procuramos desenhar uma certa sensualidade antropológica nordestina a partir das frutas da região). “Já que pretendemos percorrer algumas das capitais do Brasil com essa exposição, ela sugeriu que montássemos algo chamado A História na Arte de Tereza Costa Rêgo”, revela a artista.
Atualmente, elas e o neto de Tereza, Daniel Rozowykwiat, escolhem os cerca de trinta quadros que comporão a mostra. Entre eles, naturalmente, estará os da série Sete luas de sangue, de 1999, “o olhar poético de uma pintora que, por acaso, é também historiadora”, diz a Tereza das três vidas. Neta do Conde da Boa Vista, nascida Terezinha Barros Costa Rêgo para “enfeitar o piano da sala” de uma família aristocrática recifense, largou tudo, o casamento, para viver a aventura política e amorosa da relação com o líder comunista Diógenes Arruda. De 1964 a 1979, foram vários os caminhos, entre migrações e exílios. Tantos que a fizeram testemunha privilegiada do breve século 20: Tereza viveu o golpe de Allende, no Chile; o maio de 68, na França; a Revolução dos Cravos, em Portugal e Revolução Cultural, na China. A história é matéria de sua vida. “Acabei fazendo uma pós-graduação em História na Sorbonne”, diz. “Mas não sou uma intelectual, sou apenas uma operária do meu ofício”, diz ela que, na militância, sob o codinome Joana, viveu sua segunda vida.
Entre os quadros, há um quase nunca visto pelo público. A partida, de 1981, traz sua imagem debruçada sobre o corpo de Diógenes, morto num infarto pouco depois da volta do exílio, na França. Na base do quadro, estão os bilhetes escritos em papel finíssimo de cigarro pelo líder comunista para ela, quando esteve preso pela Ditadura, em São Paulo. “É um quadro que até hoje me sangra”.
“Quando Diógenes morreu, naquele momento de muita dor, a coisa saiu do meu útero. Decidi: agora vou pintar. Até aquele momento, eu tinha sido a filha do meu pai, a irmã dos meus irmãos, a mulher de Diógenes. Fui para Olinda, a cidade que me deu minha identidade como pintora”, lembra ela, prestes a entrar num quarto ciclo. “Uma pessoa, ao completar 85 anos, tem dois caminhos a seguir: a morte ou a vida. Perdi muitas pessoas, tenho um sentimento muito forte, que é a proximidade da morte, mas tenho o outro caminho, de viver muito, e não envelhecer, um desejo muito ávido de viver uma juventude tardia. Não vou saber envelhecer”.