A cena de um vendedor anotando os cálculos na caderneta parece não fazer parte do cenário do comércio atual, gerido por softwares. Chamar o cliente pelo nome, então, é raro em uma época dominada pelas relações impessoais no varejo. Mas ainda há algumas mercearias espalhadas pela Região Metropolitana do Recife que resistem à chegada das grandes redes de supermercado. Os locais, também chamados de vendas ou bodegas, continuam expondo uma variedade de produtos que vão desde sabão a iguarias da culinária popular. A transformação dos estabelecimentos em espaços boêmios, onde se bebe e se joga “conversa fora”, no entanto, é o que mantém um passado – rapidamente corroído pelo tempo – como parte do presente.
As mercearias são hoje ponto de encontro da boemia saudosa do período em que o Recife parecia uma cidade de interior e os vizinhos de bairro se conheciam. O Poço da Panela, um reduto bucólico à revelia da agitação da metrópole, preserva um cantinho como aqueles de antigamente: é a Venda de Seu Vital. O sobrado verde com o chão de cimento, próxima à Igreja Nossa Senhora da Saúde, não tem nada de requinte, nem mesmo chega a ter uma lógica de organização. A freguesia é variada: há o operário e o “doutor”. Os artistas também têm espaço na mesa de dominó, disputado nas noites da semana ou nas tardes do sábado. “Ariano de vez em quando vinha aqui. Silvério (Pessoa) é um dos que passam na mercearia”, conta orgulhosa Ângela Barros, a filha do dono da bodega que recebe o nome dele.
A parte de trás da venda é a casa onde Seu Vital Barros, 74 anos, mora com a esposa, Dona Severina, 77, e duas filhas. Eles, com outros quatro filhos, chegaram ao bairro em 1969, montaram o negócio e sobrevivem dele até hoje. Nada de cardápio, os quitutes são preparados na hora por Dona Severina a gosto do cliente. O queijo acebolado é o mais pedido. Cartão de crédito? “Tem isso não, minha filha”, responde Seu Vital sem titubear. A opção para o freguês sem o dinheiro é comprar fiado. “Mas só os conhecidos!”, avisa.
Seu Vital abre a Bodega cedinho para vender o pão, fecha antes do meio-dia, reabrindo quando o Sol se põe. Encerrar o expediente nem sempre é fácil. “Já estou na velhice e eu não vou ficar aguentando gente até as 23h. Coloco para fora mesmo. Chego e falo: olha, fechou e pronto”, conta o merceeiro que tem a intimidade necessária para tomar a atitude sem perder a clientela.
Também é assim que Seu Arthur Araújo, 71, e Dona Lindalva, 67, conseguem fechar a Mercearia Nabuco. “Se deixar, eles vão ficando e não vão embora nunca”, revela rindo Dona Lindalva. O botequim, na Rua da Harmonia, em Casa Amarela, fica em uma casa antiga com mais de 100 anos. Há pelo menos 80 anos funciona como venda e há 43 está sob o comando do casal.
“Na verdade, aqui não é mercearia, não é bar, nem é restaurante. É uma mistura de tudo”, explica Dona Lindalva, falando por ela e pelo marido que é de poucas palavras. “Ele é muito chato, mas as pessoas quando veem gostam. Ele tem carisma”, fala a mulher, garantindo que este é um dos motivos do sucesso do estabelecimento.
O taxista Manuel Augusto, 75, também é um freguês fiel. Sempre vai à bodega no meio do expediente para tomar uma água de coco. “Venho aqui porque o tratamento é bom e fico conversando.” “Nós consideramos nossos clientes como continuação da família”, acrescenta Dona Lindalva, revelando o maior segredo da sobrevivência das mercearias que resistem ao tempo.
A Bodega de Véio, na Rua do Amparo, em Olinda, não é mais aquela venda de esquina, mas um refúgio para os que gostam de beber em locais que fogem aos padrões dos barzinhos da moda. Mesas não são bem vindas, no máximo, cadeiras para sentar de vez em quando. A clientela prefere ficar em pé no pequeno botequim ou se espalhar pela rua da Cidade Alta.
A bodega continua com as prateleiras cheias de bugingangas que eram responsáveis pelo lucro no passado, mas agora funcionam como chamariz, dando distinção ao lugar. As colheres de pau e os produtos de limpeza dividem espaço com as bebidas – o principal negócio do estabelecimento. “Ás vezes, meu filho pergunta: como não é bar se vende tanta bebida? Mas bar tem em todo lugar, então, manter a mercearia é um diferencial”, conta Seu Edival Hermínio da Silva, 52 anos, o “Véio”, proprietário do local. “Nós não ganhamos com a venda dos produtos, mas a parte do comércio serve para atrair as pessoas. Quem vem beber, aproveita algo”, acrescenta o administrador da venda desde 1981.
O estabelecimento também dispõe de iguarias sofisticadas. “Aqui vendemos de sidra a cachaças que chegam a custar R$ 200”, comenta Seu Edival. A mudança no perfil do espaço começou em 1999 quando o Sebrae em parceria com o Banco do Nordeste prestou consultoria para os estabelecimentos da parte histórica do município se modernizarem, transformando-se em pontos turísticos. Deu certo: a fama da Bodega de Véio traz gente de todo país ao local. O bom retorno financeiro até motivou Seu Edival a abrir uma filial, nos finais de semana, na Serra Negra, em Bezerros.