Quando tomou emprestada do jornalista e poeta Ribeiro Couto a expressão “homem cordial” para escrever seu Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda não contava que sua análise sofresse um encolhimento radical, sendo relacionada única e exclusivamente a algo positivo na persona dos brasileiros e brasileiras. Popularizou-se o sentido ótimo do termo e por ele inferiu-se que o autor de um dos mais importantes livros a respeito do País nos entendia unicamente como afáveis, francos, simpáticos, alegres. Mas não foi isso exatamente o que SBH quis dizer.
A cordialidade observada pelo intelectual explica antes de mais nada nossa propensão à emoção, ao coração (daí o cordial), em detrimento da racionalidade. Pode parecer muito romântico, mas o fato é que a agressão, a estupidez e toda forma de violência também fazem parte desse brasileiro dominado pela o coração, o sujeito que vemos protagonizar os milhares de atos de desrespeito físico e simbólico visto há anos nas ruas e nas redes sociais – desrespeito intensificado agora na histórica polarização vista nas eleições que terminam hoje.
O que está acontecendo nas ruas – onde até mesmo declarar visualmente o voto vem sendo perigoso -, faz parte de uma característica histórica (e não sociológica) do brasileiro teorizada por Sérgio Buarque e sintetizada com excelência pelo literato Antônio Cândido: “O 'homem cordial' não pressupõe bondade, mas somente o predomínio dos comportamentos de aparência afetiva, inclusive suas manifestaçõesexternas, não necessariamente sinceras nem profundas, que se opõem aos ritualismos da polidez.” A fala-síntese de Cândido é reverberada pela professora Eliane Veras, da Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), que vê sem filtros essa mitologização de nossa afetividade. “Os brasileiros tendem a ter uma visão muito distorcida de si mesmos. A afabilidade e alegria funcionam como uma casca sem polimento e verniz. Basta observar nosso comportamento em filas e, em especial, no trânsito. Dá para se sustentar esta autoimagem?” Nesse sentido, ela sublinha a grande distância entre aquela cordialidade que tomamos como nossa marca indefectível e charmosa e o que Sérgio Buarque tentou nos dizer: o autor estava construindo uma tipologia na qual sustentava essa cordialidade associada a elementos emocionais que regem praticamente quase todas as esferas da vida cotidiana. “A emoção é capaz de produzir atrocidades: eu odeio, eu destruo o meu inimigo. No senso comum o que sobressai é a dimensão positiva: ser cordial é ser gentil. Mas SBH não está preocupado não com a gentileza, mas com a instabilidade das instituições políticas e democráticas quando regidas por sentimentos de simpatias e antipatias. Talvez, considerando o que vemos hoje - e que certamente não é muito diferente do que se via no passado-, SBH não esteja tão superado como seria de se supor.”
Atrocidade é um bom termo, de fato, para definir algumas manifestações vistas em espaços como jornais, revistas, redes sociais. Em Mogi das Cruzes (SP), um colunista escreveu que era necessário, hoje, dia de decisão eleitoral, “trancar nossas 'secretárias do lar' em casa, interditar as casas de forró e proibir os porteiros de saírem dos prédios”. Anderson Magalhães (de O Diário de Mogi), que foi afastado do cargo, mostrou um enorme desrespeito aos nordestinos e pobres de maneira geral: para ele, essa parcela da população aparece como uma ameaça pelo fato de votar em massa na candidata Dilma Rousseff. A mesma parcela da população brasileira surge, pelas mesmas razões, como principal tópico de uma página chamada “Dignidade Médica” no Facebook. Ali, chega-se a sugerir castração química para que nordestinos não se reproduzam. As várias ofensas ao nordestinos provocaram, é claro, reações que foram da justa indignação até a reprodução de preconceito vindo do “outro lado”: na página (Tumblr) “Esses paulistas”, lemos uma compilação de comentários ofensivos dirigidos a moradores de São Paulo que elegeram o candidato Geraldo Alckmin, do PSDB, no primeiro turno da eleição. Vale lembrar que a Lei n.º 7.716/89, que trata do crime de discriminação ou preconceito de procedência nacional, enquadra esse tipo de atitude.
Há anos pesquisando comportamento em mídias digitais, a professora Suely Fragoso, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, percebeu, já em 2006, a agressividade de usuários brasileiros do Orkut (rede social desativada em setembro deste ano) em relação a internautas norte-americanos. Este ano, ela analisou também a agressividade nacional na internet e entre usuários de games – observando que ela também é uma constante entre norte-americanos. Nesse lugar da virtualidade, nosso aspecto cordial – no sentido buarquiano, perceba-se - se confirma: “Pela própria natureza desses sistemas de rede social, ou seja, pelo modo como eles se organizam, eles reduzem a possibilidade de confronto tão violento quanto no início do Orkut. Mesmo assim, dá para ver que são muitos os relatos de casos reais e os exemplos de posts racistas e agressões tanto nos EUA quanto aqui - contra mulheres, negros e pessoas de outra religião, por exemplo. Essa construção cai muito bem com o nosso caráter 'cordial', no Buarque de Holanda, ou seja, como o fato de que agimos 'conforme o coração', de modo passional. Diante do 'outro', do mal, do inimigo, da ameaça, reagimos 'como se deve' - defendendo o nosso lado.”
Além de nos lançar em um maremoto de violência, essa cordialidade ainda atinge outro ponto central (e totalmente conectado ao nosso comportamento sensível ou virtual): a política. Antônio Cândido observou: “O 'homem cordial' é visceralmente inadequado às relações impessoais que decorrem da posição e da função do indivíduo, e não da sua marca pessoal e familiar, das afinidades nascidas na intimidade dos grupos primários.” Significa dizer que nossa cordialidade não nos ajuda a criar e principalmente manter um ambiente institucional livre de privilégios pessoais. Temos inclusive um termo para um exemplo dessa realidade: aquele que consegue um emprego através do QI (Quem Indica). Esse aspecto, observa Eliane Veras, é histórico. “A construção da nação foi uma 'obra' da elite com a exclusão do povo, basta lembrar que no século XIX vivíamos sob o regime escravocrata. O modo de olhar os 'de baixo' não se alterou. Nossa classe média tende a reproduzir o discurso e o comportamento desta elite, que percebe sua posição como merecimento. A mudança não poderá vir de cima. Ela terá que vir de baixo, do processo político e luta e autoformação de uma consciência política própria.”
No campo da vida cotidiana, essa passionalidade, característica – ou construção? - nacional que deve continuar nos próximos dias mesmo com a escolha do presidente ou presidenta, não é necessariamente ruim, acredita Suely Fragoso. Para ela, a nossa facilidade de partir para a agressão nos espaços virtuais ou no mundo de todo dia pode ser o preço que pagamos pela capacidade de amar muito intensamente. “Quem é passional é intenso - em relação aos amigos e aos inimigos. Quando não temos 'sangue frio' para 'deixar passar um desaforo' na internet, no trânsito, na rua ou mesmo em casa.” Ou seja, a cordialidade é necessária para não nos tornarmos em seres assépticos, funcionais, mas seu lugar é o ambiente doméstico e os espaços não institucionais – e ela deve, sempre, ser usada com moderação.