Festa e alegria não combinam nem um pouco com censura ou intolerância. O público gay do Recife não só sabe disso como tem espalhado a liberdade por aí. Tanto que os organizadores do Guia Gay do Recife garantem: ainda não acharam outra cidade com tantos espaços públicos que viraram points de energia homossexual. E adivinha onde estão essas faíscas do arco-íris? Só mesmo os turistas incautos ou os “nativos” mais desligados não sabem: é no circuito Boa Vista-Recife Antigo.
“Muitos gays vêm para o Recife sem saber quais os melhores lugares”, comenta um dos idealizadores do Guia Gay Recife e supervisor comercial da Guiya Editora, Welton Trindade. Ele E o namorado, Márcio Claesen, coordenam de São Paulo a coleta de informações e divulgação do guia, que também é feito em outras cinco cidades: São Paulo, Salvador, Brasília, Florianópolis e Belo Horizonte.
A ideia inicial de Welton era abrir uma agência de turismo especializada no público gay. “Mas, aí, eu me perguntei: o que um gay vai fazer nessa cidade? Como ele vai saber quais são os locais gays? Foi quando mudei o negócio”. Ele explica que o principal critério é frequência. “Não existe lugar melhor ou pior pra gente. O leitor é quem decide. A gente faz um cardápio e a pessoa escolhe”, explica Welton.
Ele e Márcio visitam os locais, trocando informações e indicações com pessoas ligadas ao entretenimento da cidade. O guia conta com 4.500 exemplares impressos, distribuídos principalmente em hotéis. Na internet, fica disponível o mesmo conteúdo em formato PDF (acesse o Guia Gay Recife). O plano da Guiya é fazer uma versão online em breve.
A publicação traz quase 30 pontos da cidade, divididos em categorias como “Bares” e “Hot” (que sugere uma conotação sexual mais intensa). Muitos funcionam somente na sexta e no sábado. Oitenta por cento são nos bairros centrais: Boa Vista, Soledade, São José, Santo Antônio, Santo Amaro e Bairro do Recife. “Sem dúvida essa área da Boa Vista é o coração gay da cidade”, diz Welton. No mapa ao lado, você confere esse circuito do Centro.
ABERTO - O operador de call center Kleber Thomaz, 21 anos, gosta de começar noite da sexta-feira com amigos no Posto Shell da Avenida Conde da Boa Vista com a Rua Gonçalves Maia (ponto 15 do mapa). “Quando o ambiente não é GLS é mais fácil ter preconceito. Todo mundo já sofreu algum tipo de preconceito, mesmo indireto”, comenta o rapaz. No local, o público é jovem e passageiro, porque a mistura da área do posto com a conveniência Select transforma a área num “esquenta” para as boates e bares próximos, como Metrópole, Santo Bar e MKB. “Quem vem da faculdade ou do trabalho ou mora longe faz um ponto de encontro aqui. Tem gente que vai pra casa e tem gente que vai pra balada”, detalha o cabeleireiro Carlo, 25 anos.
Para Welton, a quantidade de lugares abertos onde gays podem circular, demonstrar afeto e se divertir sem serem hostilizados é uma marca muito forte do Recife. “Chega ao ponto de um posto de gasolina ser uma referência”, brinca. Ele diz que se sente muito feliz ao ver lugares como a Praça do Arsenal e o Marco Zero como áreas de tolerância. “A gente vê não só adultos como adolescentes (homossexuais) namorando e tendo um momento agradável, sem ser perturbado nem por moradores daqui nem por turistas”, destaca. Segundo ele, em capitais como Brasília e São Paulo os points gays são mais numerosos, mas são focados em ambientes fechados e pagos. Já em Salvador, há maior incidência de violência contra homossexuais.
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O empreendedor considera Recife uma cidade tolerante. Muitos dos entrevistados pelo JC em cinco dos pontos visitados também. Mas lidar com o preconceito ainda está longe de ser fácil. Homens e mulheres de várias idades abordados pela reportagem não quiseram falar, deixarem-se fotografar ou dar os nomes. Um grupo que estava na frente do Conchittas, formado por professores e servidores públicos, explica: “Quem lida com o público, principalmente, não pode ficar à vontade fora dos ambientes GLS, mesmo que eles sejam na rua”, comentou um deles. O Conchittas fica na esquina da Rua das Ninfas com a Rua Manoel Borba. Na verdade, esse cruzamento é muito movimentado, porque ficam ali, além do Conchittas, a Metrópole e o Santo Bar.
A Metrópole, aliás, foi a precursora dessa base gay na Boa Vista. “Quando a gente montou a boate, já foi sabendo que ia ser clube da porta pra dentro e social da porta pra fora”, diz o empresário e consultor Canário Caliari, marido de Maria do Céu, referência da cena gay para entretenimento. Entre outros movimentos, há quase dez anos a boate promove debates com candidatos à Prefeitura e ao Governo do Estado. “O preconceito ainda é muito grande. Ainda tem gente que é agredida, que é expulsa da família. É muito importante ter isso na agenda. Temos que manter essa discussão acesa”, reforça Maria do Céu. Em 2015, a Metrópole vai implantar no mesmo bairro a Feira da Boa, de moda, arte e gastronomia. Hoje a boate tem mais de 1.700 metros quadrados, divididos em seis ambientes. A previsão é que no próximo ano haja uma nova ampliação.
NICHO - As entradas para os clubes listados no Guia Gay Recife variam entre R$ 10 e R$ 40. E, como em qualquer bar ou casa de shows, há ainda a renda com bebidas e comida, tanto dentro do local como nos arredores. Mas Welton Trindade explica que o público gay é um nicho interessante para quaisquer atividades comerciais. São pessoas mais dispostas a gastar com vestuário, diversão e viagens. Além disso, estão inclusas em um segmento que cresce no mundo inteiro, os Dinks. A sigla vem do inglês double income, no kids e é usada para designar casais, héteros ou homossexuais, que não têm filhos (renda dupla, sem crianças, na tradução para o português).
Dados extraídos do Censo de 2010 do IBGE mostram que os homossexuais têm renda mais alta do que os heterossexuais. Desde a faixa de 1 a 2 salários mínimos até a de mais de 20 salários-mínimos.
“Como são consumidores que viajam muito, o interesse das empresas não é focado em um Estado”, explica Welton. A receita do Guia Gay Recife vem de anúncios, parte deles de empresas paulistas que fornecem produtos e serviços específicos para o público gay.