Atualizada no dia 24/03/2015, às 10h38.
Os olhos e as lentes dos turistas buscam freneticamente as ilhas, os morros, as enseadas, os golfinhos, as tartarugas, bem como todos os privilégios naturais em meio ao Oceano Atlântico. O arquipélago de Fernando de Noronha, na contramão da impressão nos fôlderes das agências de turismo, também é cercado de gente. Das histórias que se contam naquele lugar, quantas chegaram aos ouvidos dos forasteiros em suas passagens deslumbradas? A inquietação acerca da preservação das memórias, para além dos cartões-postais, impulsionaram o projeto Milha Ilha.
A turismóloga Ângela Tribuzi trabalhou na ilha e guardou o desejo de contar as histórias do moradores, que muitas vezes passam despercebidos, quase como se fossem figurantes, frente aos flashes dos visitantes. “Por isso começamos com os mais velhos, pois ficamos preocupados que as lembranças se perdessem. Um lugar que tem tanta história, desde o presídio às lutas de resistência de quem ainda vive por lá”, conta. As crianças também foram convidadas a participar, desenhando a “Minha Ilha” de cada uma delas.
Entre os leitores que percorrem estas linhas, certamente, alguns já foram agraciados com um passeio pela paradisíaca Noronha, e alguma recordação guardará da visita. A julgar pelas imagens impressas nos cartões-postais do Governo antes do período de alta estação e por aquelas publicadas na redes sociais depois das férias, a vida em Noronha resume-se e preenche-se de verde e azul. Quando se chega e se sai da ilha com tempo marcado, a ânsia é de desfrutar de tudo que o pacote turístico oferece, o que já não é pouco.
“A ideia é que os turistas conheçam também o lado humano de Noronha. Quando se está lá, pode não dar tempo de conhecer o Seu Orlando ou o Seu Jedemir, mas, visitando o site antes ou depois da visita, é possível ter uma percepção bem mais ampla do que aquele pedaço de terra no meio do oceano representa”, conta a coordenadora do projeto, acrescentando que o site possui versão na língua inglesa para que a representação alcance também os turistas estrangeiros.
Ângela Tribuzi viajou para Noronha acompanhada do fotógrafo Tom Cabral e da cineasta Tuca Siqueira, responsáveis pelas imagens, além do jornalista e escritor Inácio França, que assina os textos hospedados no site do projeto. A equipe esteve três vezes na ilha. Na última, foi para mostrar o resultado em texto, foto e vídeo, reunidos num DVD, aos personagens da empreitada – já que nem todos possuem acesso à internet. O resgate da memória é a ferramenta que fortalece a autovalorização dos noronhenses. Os olhos dos nativos brilharam ao se enxergarem.
OUTRA NORONHA
Quem se atém às paisagens, gastronomia e patrimônio cultural da ilha talvez não saiba das histórias das pessoas que conhecem a Fernando de Noronha viva, pulsante, que muda para além dos cartões-postais. Os relatos perpassam o tempo, tão contado pelos turistas em suas diárias, e, nas vozes dos nativos, ganha outro valor e dimensão.
Familiarizado com as águas noronhenses desde criança, o pescador Orlando – cujo pai teve o mesmo ofício e o filho, hoje, é aconselhado pela mãe a se afastar do mar – é o único homem com habilidade e audácia suficientes para passar com um barco entre os poucos metros que separam os morros dos Dois Irmãos. À frente da Associação dos Pescadores, ele contou que sua profissão agora é vista com desconfiança: “Já faz muitos anos que a gente não existe. Só chega de fora projeto para preservar golfinho, para preservar tartaruga. Pescador é acusado de matar golfinho, pescador é acusado de matar tubarão, pescador é acusado de tudo. Para dar duas palavras de carinho para os pescadores não aparece ninguém. Nem o direito a trabalhar a gente tem mais”.
“O fruto nunca sabe do seu próprio sabor. Quem vai saber do seu sabor é a pessoa que come. Como é que vou me saborear?”, diz Jedemir, que é faxineiro acidental na Base Aérea (assinou sua carteira de trabalho como eletricista). Ele se refere ao reconhecimento de seus dons extrassensoriais, que o faz ver “aquilo que ninguém vê”, sem envaidecimento. Fora a sua opinião de que deveria governar a ilha, ouvida com descrença pelas pessoas da comunidade, Jedemir observa e interpreta a natureza com sabedoria. Observa o clima, dia após dia, e afirma ter descoberto um método que lhe possibilita prever as condições meteorológicas para o ano todo.