Ideias

A beleza que põe mesa

Em novo livro, filósofo Gilles Lipovetsky explica como o capitalismo artista influi no que comemos

Bruno Albertim
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Bruno Albertim
Publicado em 14/06/2015 às 4:32
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Procure uma padaria no Recife: não vai encontrá-la. Foi extinto aquele estabelecimento da esquina aonde íamos puxados pelas mãos na infância, um forno de lenha lá dentro, o sujeito de caneta atrás da orelha atrás do balcão para anotar a conta – onde o pão, cuidadosamente embalado num pacote de papel-madeira amarrado com golpes rápidos num barbante, era apenas e tão somente pão. Simples e diretamente. A padaria virou delicatessen.


Dos IPTUs mais caros aos bairros mais periféricos, todas as padarias vivem o mesmo efeito do fenômeno responsável também por alocar, em qualquer prestigioso edifício de apartamentos, as alardeadas varandas gourmet. Dos brigadeiros de criança aos terraços suspensos, a gourmetização não é fenômeno isolado. Faz parte da estetização radical do mundo contemporâneo. Agora, a essência é a embalagem.


Referência mundial na sociologia da moda, do luxo, do supérfluo necessário contemporâneo, o ensaísta Gilles Lipovetsky acaba de colocar mais assunto na roda com o lançamento de A Estetização do Mundo na Era do Capitalismo Artista. “A estetização existe desde a pré-história. A novidade agora é que a estetização é produzida pelo capitalismo pós-fordista, que se preocupa em produzir menos produtos funcionais e mais apelos de consumo ligados à estética”, ele diz, sobre a obra recém-lançada no Brasil pela Cia das Letras, uma série de ensaios em parceria com o crítico de arte Jean Serroy. Sem sensibilidade, diz ele, não há mercado. A arte e a estética estão a serviço do consumo.


E nem pense que isso é papo cabeça de acadêmico em mesa de bar. Tem diretamente a ver com nossas vidas. Se, antes, as geladeiras de nossos avós eram herdadas pelos nossos pais, hoje, nossa linda máquina de refrigerar com timer, máquina de gelo e até televisão digital na porta do freezer, dificilmente dura o intervalo entre o nascimento de um filho e outro. Como bem lembra o francês, o capitalismo dos tempos da ascensão do modelo de produção cristalizado pelos automóveis Ford buscava construir bens necessários, de consumo durável, desejados como símbolos e elementos de uma vida inteira, hoje o mercado mundial se preocupa mais em atender mais desejos que necessidades.

“Estamos na época do capitalismo artista, que incorpora a dimensão artística em todos os domínios da indústria. Até nos produtos alimentares se vende uma estética, sob pena de que o consumidor se afaste. A aparência se tornou crucial. Nenhuma indústria do consumo pode escapar”, discorre.

O capitalismo artista, portanto, age diretamente sobre não apenas o que comemos, mas sobre como comemos o que comemos. Recentemente, o chef Hugo Prouvot, formado com as técnicas clássicas de uma das melhores escolas de alta gastronomia do País, convidou o chef César Santos, para elaborar um jantar de luxo em seu restaurante no Pina. Ao preço de um quarto de salário mínimo, os comensais em suas roupas de design puderam provar, dentre outros, croquete de sarapatel, minitapioca com siri ensopado, um outro prato que consistia numa mistura de camarão e jaca e, seguindo, carneiro assado, alho agridoce, tutu de feijão branco com linguiça matuta. De sobremesa, havia, lembro, uma tortinha de goiaba quente com calda de queijo coalho. Tudo, enfim, que num tempo não muito distante, poderíamos encontrar numa barraca de feira. “Há dez anos, comidas populares não entravam num restaurante de alta gastronomia. Hoje, pode tudo, desde que feito com técnica e estética”, confirma Hugo.

Sim, a era da rabada gourmet está apenas começando. “O homem hipermoderno se encontra na encruzilhada de duas tendências poderosas: ele pode, ao mesmo tempo, comer num fast-food industrial e nutrir uma paixão pela cozinha criativa que ele cultiva como uma arte de vida refinada que lhe permite afirmar sua individualidade estética e tecer vínculos sociais”, considera. Beleza, sim, põe mesa.

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