“Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos, mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas”. Separada por 125 anos e pouco mais de 2.300 quilômetros do ambiente carioca descrito no romance de Aluísio de Azevedo (O Cortiço), uma construção recifense igualmente emblemática e insalubre não dorme. Mas o Holiday não é literatura, é vida real. Tão real que seus moradores parecem ter sido escolhidos a dedo para formar uma unidade perfeita – como na obra naturalista – , um prédio-pessoa. Alinhadas na forma de arco, que caracteriza o estilo modernista do prédio construído em 1956, janelas de 476 apartamentos abraçam (ou engolem) quem atravessa a Rua Salgueiro, em direção ao número 73, do bairro de Boa Viagem, a qualquer hora do dia. No pátio do endereço, funcionam 28 lojas que ajudam a aumentar o já insano movimento dos três mil moradores.
Parte do “volume extra” há 38 anos, Anita Viana de Souza, ou Dona Nita, 70 anos, mantém sua lanchonete no prédio onde nunca quis morar. “Se melhorassem e transformassem em um lugar decente eu poderia pensar em ficar perto do trabalho. Poderia ser um dos melhores prédios do Recife”, diz, ressaltando que, para ela, os problemas são mais estruturais que de vizinhança. Sendo assim, ela convive bem com seus clientes e mantém-se como um anexo do corpo do prédio, não precisa lidar com o que se passa nas entranhas.
Entre as lojas fica o hall de entrada, onde, de manhã já bem cedo, o auxiliar de escritório Carlos Barbosa (Carlinhos), 60, ocupa sua sala. Em meio a fotos dos tempos áureos do edifício, onde vive há mais de 30 anos, ele observa o movimento de formigueiro. “A má fama do prédio vem de muito tempo. Dizem que é uma favela em pé. Mas eu não tenho do que reclamar. Problemas existem, como em qualquer lugar, mas onde você encontra apartamentos por esses preços a 200 metros da praia?”, defende.
Os valores variam de acordo com o tipo da unidade: quitinete, quarto-sala e dois quartos, R$ 35 mil, R$ 60 mil e R$ 80 mil, respectivamente. A taxa de condomínio sai por R$ 70, R$ 80 e R$ 100, nessa ordem, e não é paga em dia por 50% dos seus moradores. É sob esse argumento que todos os problemas estruturais do prédio vão sendo justificados. O maior deles se apresenta ao lado da sala de Carlinhos. Um número equivalente à população de Fernando de Noronha conta com apenas dois dos três elevadores para se deslocarem por 17 andares. Como só pode haver uma espinha dorsal, as máquinas não funcionam simultaneamente, só em esquema de revezamento. Com tamanha demanda reprimida, não é difícil se deparar com uma fila na entrada. A espera é pela experiência mais alucinante e que melhor representa o Holiday.
A lotação é de oito pessoas. Para evitar que o limite seja excedido, o elevador só anda se houver um ascensorista, regra que é seguida no cotidiano do prédio. Pela manhã, o movimento cabe ao único funcionário contratado para o cargo. À tarde, moradores (na maioria jovens) se revezam na atividade, que vai bem além de apertar os botões dos andares.
PORTAS FECHADAS MANUALMENTE
Sem motor, as portas de correr precisam ser fechadas manualmente, mesmo método usado para travar as portas de cada andar em que se para. As caixas do elevador não são as originais (foram compradas de segunda-mão há oito anos), e revelam vários remendos: ventilador empoeirado, lâmpada pendurada em um emaranhado de fios e alguns botões quebrados. Para casos de emergência, os rapazes ajudam a manter a ordem entre subidas e descidas carregando no bolso uma providencial chave-de-fenda.
“Dona M” (nome fictício), 55, não passa muito por esse sufoco, sai pouco e prefere as escadas. Há 40 anos no prédio, conta que viu momentos de muita violência e que hoje o que mais a incomoda é o estado de abandono da moradia. “No começo era melhor. Depois foi ficando mais complicado, mas nunca tive problema aqui. O segredo é não roubar, não traficar e nem se meter na vida dos outros”, ensina. O último mandamento, aliás, é seguido pelos vizinhos em relação a ela, que oferece teto para garotas de programa vindas do interior por alguns trocados. “Dona M é gente boa”, falam. O apartamento tipo quarto e sala é simples e apartado – dividido pela proprietária e por mais três meninas –, mas limpo e organizado.
“Aqui não é ruim, é bonzinho. Fica mais perto dos hotéis e da Avenida (Conselheiro Aguiar)”, justifica Bruna (nome fictício), 22. Garota de programa protegida de “Dona M”, só fica no Holiday a quantidade de dias necessários para descolar entre R$ 3 mil e R$ 4 mil necessários para passar o mês. Depois volta para a casa da família, que não sabe a real origem do dinheiro.
O corredor de “Dona M” é enfeitado por um jardim improvisado em carrinhos de supermercado, que contrasta com os fundos do prédio vistos através dos cobogós. Sem um sistema de coleta de lixo eficiente para atender aos moradores, formou-se um verdadeiro lixão com as sacolas arremessadas de todos os andares. Além do mau cheiro, o material orgânico permite a reprodução aos montes de baratas, ratos e gatos.
Esses são os bichos que surgem por conta própria e se multiplicam aos montes do lado de fora dos apartamentos. Das centenas de portas para dentro, são muitos os que recebem nome e coleira. Com saudade da casa onde morou há quatro anos em Penedo, Alagoas, Vera Lúcia dos Santos, 50 anos, cria duas cadelas em um quarto e sala que divide com um sobrinho, um filho, a nora e a neta de cinco meses. “Fiquei viúva, entrei em depressão e tive um derrame na perna. Não pude mais trabalhar e vim para o Recife cuidar da minha saúde. Uma comadre que já morava aqui me arrumou o apartamento e eu fiquei. É bom porque aqui eu me distraio, tem muito movimento”, diz com um sorriso que revela o dente de ouro fruto do trabalho como joalheira na terra natal.
Lá no alto, no 15º andar, a impressão é que o temperamento do Holiday se abranda. Longe da montanha de lixo, os olhos se prendem à vista privilegiada do mar intercalado pelas torres de Boa Viagem e o nariz fica aliviado com o cheiro de sabão espalhado pelas roupas penduradas por todo o corredor. O astral mais leve se estende para dentro da casa de Agnaldo Cardoso, 83 anos, 48 vividos no mesmo endereço. Devoto de Santo Antônio e São Francisco, fala dos problemas do edifício como a nossa consciência fala conosco. “Aqui é uma maravilha para quem sabe viver”. Para deixar o prédio, é preciso chamar o elevador. Literalmente. Sem botões funcionando, grita-se “Elevador! Para no 15”. E se responde: “No 15 não para, desce para o 14”. Um andar abaixo e já dentro do elevador, o diálogo que se afasta dos conselhos de Agnaldo e reaproxima o Holiday da experiência que poderia ser narrada por Aluísio de Azevedo:
– E a terra, como anda?
– Tá ruim. Tão matando muita gente.
- É mesmo, semana passada meu primo vacilou. Deu quatro tiros no cara e voltou pra casa.
- Não livrou o flagrante?
- Não. E pior: o cara não morreu. Ele vai ter que terminar o trabalho.