Nos últimos dias, a entrevista de Lula ao El País, na qual ele colocou, em par de igualdade, a premiê da Alemanha no poder há 16 anos, Ângela Merkel, e o ditador da Nicarágua, Daniel Ortega, repercutiu no Brasil e no mundo.
Dependendo da fonte, é possível tirar de alguns acontecimentos recentes a possibilidade "muito concreta" de a Nicarágua entrar para a União Europeia.
As comparações entre o pequeno país da América Central com população menor que a de Pernambuco e a Alemanha, com 84 milhões de habitantes, são inevitáveis depois do que disse Lula.
Com uma boa dose de ironia, se dependesse do caricato imaginário político brasileiro, seriam nações que, pelas suas similaridades, poderiam até "estar juntas na União Europeia".
A ideia meio insana, meio bizarra, só seria possível se além de estar no continente europeu, uma impossibilidade geográfica, a Nicarágua atendesse aos chamados Critérios de Copenhague. Esses critérios foram definidos em 1993 e incluem pontos como "instituições estáveis que garantam a democracia, o Estado de Direito, os direitos humanos, o respeito pelas minorias e a proteção das mesmas".
Na Nicarágua, o presidente Daniel Ortega mandou prender sete opositores antes da eleição, persegue com boa constância os meios de comunicação e prende jornalistas que não concordam com ele. Em 2020, o governo dele foi acusado de matar ao menos 212 estudantes que protestaram contra o regime desde 2018. Os que foram presos, relatam espancamentos e abusos na prisão.
Isso teve início há 14 anos. Quando assumiu o poder em 2007, para não mais sair, Ortega venceu uma eleição considerada limpa, mas com uma campanha que se comprovou baseada em estelionato. Ele, conhecido revolucionário da esquerda sandinista, chegou a defender ideias de centro-direita e convenceu a população, com um discurso religioso e pacifista, de que entendia as regras do jogo e estava disposto a jogar.
Assim que assumiu o mandato, aliou-se a Hugo Chavez na Venezuela e começou a reprimir liberdades democráticas.
Já a Alemanha de Angela Merkel, comparada a Ortega recentemente, é fundadora da União Europeia e ajudou a escrever os critérios de Copenhague.
Merkel está há 16 anos no poder, é verdade, mas suas reconduções no Parlamento nunca foram questionadas dentro ou fora da Alemanha. O país é um exemplo econômico para o mundo. Um exemplo também de democracia sustentável e liberdades civis.
Sob Merkel, a Alemanha tornou-se protagonista no planeta em setores como inovação e tecnologia. Até quando imigrantes pobres se tornaram uma ameaça à União Europeia e países como Itália, Inglaterra e França balançaram em direção à xenofobia, Merkel foi uma das poucas líderes do continente a olhar com atenção e humanidade para o problema.
Não é por acaso que números de antes da pandemia atestavam a Alemanha como o país que mais recebeu pessoas de países pobres na Europa, quase 1 milhão, contra cerca de 600 mil da segunda colocada, a Inglaterra.
Relatadas essas óbvias diferenças, é preciso adentrar um outro campo, também abordado na entrevista de Lula para tentar justificar a comparação esdrúxula que fez entre Ortega e Merkel.
Ele citou a tal da "autodeterminação dos povos".
Depois de ser confrontado pela entrevistadora por ter comparado Nicarágua e Alemanha, o ex-presidente Lula saiu-se com "autodeterminação dos povos", afirmando que, na verdade, não pode criticar a Alemanha, do mesmo jeito que não pode criticar a Nicarágua, para não se meter no quintal alheio.
Pois bem, cabe aqui apresentar um homem que é considerado um dos maiores filósofos do século XX, um alemão, de Colônia, chamado Eric Voegelin. O professor Voegelin escreveu um livro, a partir da transcrição de uma aula, em que explicou como Hitler conseguiu assumir o poder e matar milhões de pessoas em um dos episódios mais lamentáveis da história da humanidade.
O livro detalha, entre outras coisas, como, sob a desculpa de "não criticar algo que estava acontecendo em outro país", nações inteiras fecharam os olhos para o nazismo e para o fascismo.
Milhões de pessoas foram mortas, enquanto líderes mundiais diziam que nada se podia fazer porque o tal Hitler havia sido "eleito e estava governando legitimamente". Ninguém estava disposto a se meter.
Basicamente, era a desculpa lulista da "autodeterminação dos povos" aplicada ao contexto da época.
Se a comparação falaciosa entre Merkel e Ortega é um absurdo, a justificativa de que não pode julgá-los, igualmente, por causa da "autodeterminação dos povos" é, no mínimo, desonesta, além de covarde.
Muita gente viu como impertinência a reação da entrevistadora do jornal El País ao rebater Lula por comparar o incomparável. Mas, a culpa é do ex-presidente brasileiro.
Por vários dia, o chefe do PT circulou pela Europa como um "grande líder", um condutor, cheio de frases bonitas e heroicas para ser aplaudido no parlamento europeu e usar as imagens na campanha de 2022.
Um verdadeiro líder conduz além de seu território, porque sabe que tem responsabilidade nisso. Quando a Venezuela, a Bolívia, Cuba ou a Nicarágua, ameaçam a estabilidade do continente americano, é responsabilidade de Brasil e EUA atuarem para reequilibrar a região.
Sim, Brasil e EUA.
E não é uma opção.
Embora haja um abismo entre os dois. O vão é muito maior quando comparados com todas as outras nações das Américas.
Como países mais ricos e mais fortes no continente, ambos têm responsabilidades que atravessam suas fronteiras.
A questão da jornalista europeia é lógica: como querer mostrar que é um grande líder e se eximir deste papel sempre que não for conveniente, por ideologia?
Pois é. Como?
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