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Cena Política: Justiça Eleitoral relativiza censura e cria precedente perigoso

Decisão foi tomada esta semana, liberando a exibição de um documentário apenas depois da eleição.

Igor Maciel
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Igor Maciel
Publicado em 21/10/2022 às 17:03 | Atualizado em 21/10/2022 às 17:52
 Antonio Augusto/Secom/TSE
Carmén Lúcia na sessão do dia 21/10 do TSE. - FOTO: Antonio Augusto/Secom/TSE
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A ministra Cármen Lúcia, em atividade no TSE, inovou. Ela proferiu um voto sobre a permissão de exibição de um videodocumentário sobre o atentado sofrido por Bolsonaro (PL) em 2018, criando um tipo de censura com relatividade temporal: "Este é um caso que ainda que em sede de liminar é extremamente grave, porque de fato nós temos uma jurisprudência no STF na esteira da Constituição no sentido de impedimento de qualquer forma de censura. Medidas como esta, mesmo em fase de liminar, precisam ser tomadas como algo que pode ser um veneno ou um remédio", disse. E, logo em seguida, afirmou que concordava em só "liberar a exibição do documentário no dia 31 de outubro". É um dia após a eleição. "Não se pode permitir a volta de censura sob qualquer argumento no Brasil", ainda finalizou a ministra.

É uma relativização temporal. Foi como se ela dissesse que "é censura" e isso é um absurdo, mas só vai ser um "absurdo válido" depois do pleito. O que eu acho do vídeo, o que você acha ou o que a ministra acha é irrelevante, porque nenhum de nós o assistiu. Não é que o documentário foi retirado do ar porque trazia mentiras ou porque atenta contra a honra de alguém sem apresentar comprovações factíveis. Ele foi censurado (sim, a palavra é essa) antes de ser visto por qualquer um, antes de ser exibido.

Todos os ditadores conhecidos que já existiram no mundo controlam a informação e dificilmente chamam isso de censura, da mesma forma que não se intitulam ditadores. Não é apenas porque são cínicos, mas porque juram que atuam com rigidez e controle em nome de um bem maior no qual eles acreditam. Nenhum desses equivocados se vê equivocado ao suprimir liberdades. O ditador não chega em casa, olha no espelho e pensa: "como eu sou mau". O sujeito chega àquilo pelas circunstâncias de seu pensamento e do grupo que lhe é mais próximo e fiel, mas acredita que está fazendo o necessário, seja pela própria ambição ou por uma sociedade mais justa na visão dele próprio.

Quando se trata de suprimir liberdades individuais e reprimir o direito dos cidadão, sempre estará equivocado, mas não se enxergará assim e se justificará com relativizações. Por isso é perigoso quando uma ministra da Suprema Corte e de um Tribunal Superior Eleitoral admite que está votando a favor de algo que "é censura", mas necessário por um "motivo de força maior", na proximidade da eleição.

Preocupa ainda mais porque o episódio não é uma ilha num mar de liberdades. É somente um impulso a mais na engrenagem policialesca em que se transformou o judiciário nos últimos anos. O Supremo Tribunal Federal, literalmente, prende numa eleição para soltar na outra. Levados pelas circunstâncias ou empenhados em controlar o fluxo dos acontecimentos, empurrados pelo destino ou de propósito, ministros da Suprema Corte que deveriam ser consultados como a última instância do Sistema, agora praticamente vão às ruas com algemas na cintura. Tem algo de muito errado nisso e não é de hoje.

O processo que transforma sociedades livres, mantidas sobre um Estado Democrático de Direito, em ditaduras oprimidas por censura não se dá no giro de uma chave, com um gesto simples ou uma ordem formal. A formalidade é sempre o derradeiro resultado, o girar da chave é só a mais visível consequência. Depois de proibir a primeira vez, você precisa justificar e, para manter a justificativa, você precisa proibir de novo.

Quanto mais longe se vai nesse caminho, mais difícil é retornar. O Ato Institucional de 1968 foi apenas o reforço da formalidade para algo que se tornou explícito em 1964, mas que também não começou em 1964. Iniciou-se bem antes, nas pequenas decisões que se tomavam "por um bem maior" e que eram aceitas como justificativa de "manutenção da paz", da "ordem" e da "segurança nacional".

A censura justificada é o ditador explicando ao espelho que não é tão mau como parece. A ministra Cármen Lúcia sabe que não existe censura relativa, porque não existe liberdade relativa.

Então, o que se processa nesse caso do documentário e em várias outras situações que ao longo do tempo estão sendo relativizadas, até dentro da imprensa profissional, com jornais sérios sendo alvo de atenção demasiada dos tribunais superiores sobre seu conteúdo, é um precedente perigoso que está sendo ignorado até pelos próprios meios de comunicação sérios.

Nunca é demais lembrar, porque alguns insistem em esquecer, mas é possível dialogar com um mau governo, por menos que você se entenda com ele e por mais que você discorde de suas diretrizes.

O problema é ficar proibido de conviver e dialogar, por ter ignorado sinais como esse que estamos vendo agora.

 

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