A falta de energia e o falso dilema entre público e privado

O problema não são as concessões, mas as concessionárias. O problema é a regulação ser capturada pelas empresas que deveria fiscalizar.

Publicado em 15/10/2024 às 20:00

No breu de São Paulo, causado pela interrupção no fornecimento de energia em várias localidades, abrem-se as portas e janelas para argumentações de tiro cognitivo curto. Rapidamente aparece alguém dizendo que o problema é fazer concessão dos serviços e que o correto seria o governo ainda estar tomando conta de tudo.

É uma estupidez cometida, geralmente, por quem tem pouca memória ou nunca conheceu a realidade de setores como o de energia elétrica antes das concessões.

Era melhor?

Se hoje você consegue fazer solicitação de uma ligação elétrica na zona rural ou em cidades do interior mais afastadas dos grandes centros, é porque o poder público concedeu o serviço e exigiu metas de expansão às empresas. A cobertura da rede de distribuição de energia era um horror.

No caso da telefonia, com o lançamento dos celulares, era necessário entrar numa lista e esperar ser contemplado, para depois gastar uma fortuna por uma linha telefônica. Não havia redes de comunicação suficientes. Ninguém conseguia fazer uma ligação quando se afastava um pouco de qualquer grande centro.

Dilema falso

Quem disser que os serviços de energia e telefonia eram melhores quando eram operados por empresas públicas é desavisado ou demagogo, quando não mau caráter. Reduzir a discussão sobre a péssima qualidade do serviço oferecido em São Paulo para o falso dilema entre o público e o privado é mesquinhez intelectual.

E esse tipo de argumento infelizmente encaixa fácil nas bobagens que certos grupos políticos costumam gritar por aí em platitudes de outdoor, apoiados por sindicatos que nunca conseguiram sair dos anos 1970 no Brasil.

Camisas

Mas é importante buscar um meio de explicar como funcionam as concessões de maneira didática. Então imagine que você é proprietário de uma marca de camisas. No começo você dá conta de tudo, da fabricação à venda final, afinal são poucos clientes por mês. Mas aí, rapidamente, os clientes começam a se multiplicar. A notícia é boa, mas é um problema. Se você fabricou duas camisas por dias, agora terá que fabricar 200.

A solução inicial é ir contratando e ampliando o número de funcionários. Mas é preciso supervisionar todo o processo para manter a qualidade. Agora você tem que estar em cada setor da fábrica e também na loja.

Em casa, seus filhos começam a reclamar que você trabalha demais e não está conseguindo levá-los à escola, nem ao médico. O dentista, então, nada feito. Você deixa de ter tempo para cuidar do básico enquanto se envolve cada vez mais com processos da empresa que cresceu demais.

Crescendo

Aí, mais uma expansão, os clientes se multiplicam de novo e é preciso abrir novas lojas. Como estar em todas ao mesmo tempo, como garantir qualidade? As crianças estão em casa sem ir para a escola, sem consulta médica, sozinhas sem segurança. Que tal demandar outras empresas para assumirem parte do seu trabalho menos básico enquanto você se concentra naquilo que é essencial?

E se você pudesse encontrar uma empresa que fabricasse suas peças e se responsabilizasse pela qualidade do trabalho? E se encontrasse parceiros que abrissem franquias da sua marca, para lhe tirar o peso de supervisionar todas as lojas?

Regulação

Mas como você poderia garantir que essas empresas fariam o trabalho seguindo os parâmetros que atendem seus clientes, os seus parâmetros? Que tal contratar supervisores da marca que fariam esse controle? Se você conseguiu seguir bem a analogia, já entendeu onde cada personagem aqui se encaixa.

O dono da empresa é o governo, que precisa conceder alguns serviços para outras empresas com o objetivo de ter mais tempo (e dinheiro) para cuidar da Saúde, da Educação e da Segurança, que são básicos. As outras empresas são as concessionárias que assumem o serviço do governo em alguns setores. Os supervisores de marca são as agências reguladoras.

Faltou luz

Agora, continuando nosso exercício de imaginação, pense que uma das empresas concessionárias, a que cuida de uma das fábricas, começou a utilizar tecido de baixa qualidade nas camisas e elas estão rasgando na primeira lavagem, como se fossem de papel.

O erro foi cometido pela concessionária que comprou material de baixa qualidade querendo economizar, é verdade, mas onde estava o supervisor da marca, onde estava a agência reguladora nessa história?

O concessionário tem que ser punido e até excluído. Mas as agências reguladoras devem ser responsabilizadas também.

Públicas

No caso de São Paulo e em tantos outros pelo país, as agências reguladoras são o grande problema. Porque as concessionárias não ofereceriam produtos de baixa qualidade se houvesse fiscalização efetiva das agências. E no caso do setor elétrico e de tantos outros no Brasil em que há concessões ativas é preciso dizer uma coisa muito dura: as agências reguladoras são públicas.

O governo abriu mão do serviço principal porque não dava conta. Mas o governo não dá conta nem das agências reguladoras, imagine da operação toda. O que desmonta o argumento de que o Estado precisa assumir tudo.

Capturadas

Mas e as agências reguladoras, como se obriga elas a fiscalizar as concessionárias? Voltando à analogia da fábrica de camisas, imagine se você descobrisse que a empresa responsável pelas suas camisas e o seu supervisor de qualidade eram mais amigos do que deveriam. O supervisor estava sendo levado a não fiscalizar direito, aliviar as punições e fazer vista grossa na compra do material.

O problema não são as concessões, mas as concessionárias. O problema não é o setor privado atuando nos serviços públicos. O problema é o serviço público de regulação ser capturado pelas empresas que deveria fiscalizar.

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