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UFPE cria cotas para trans e outros grupos na pós-graduação. Diretor da Faculdade de Direito pede que MEC suspenda medida

Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão da UFPE aprovou que 30% das vagas de mestrados e doutorados vão para negros, ciganos, indígenas, trans, quilombolas e pessoas com deficiência

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Margarida Azevedo

Publicado em 01/06/2021 às 18:11 | Atualizado em 31/08/2022 às 15:02
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Depois das cotas na graduação para egressos de escolas públicas e pessoas com deficiência, instituídas por leis federais, a Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), por decisão interna, implementa agora cotas também na pós-graduação. Do total de vagas nos mestrados e doutorados, no mínimo 30% serão destinadas a pessoas negras (pretas e pardas), quilombolas, ciganas, indígenas, trans (transexuais, transgêneros e travestis) ou com deficiência.

A nova política afirmativa foi aprovada Conselho de Ensino, Pesquisa e Extensão (Cepe) na semana passada. A cota não valerá para pós-graduação latu sensu (especializações). Antes de submeter a proposta à avaliação do Cepe, a UFPE realizou uma consulta pública sobre o assunto. Contrário a essa cota por considerá-la ilegal, o diretor da Faculdade de Direito do Recife, Francisco Queiroz, ingressou no Ministério da Educação (MEC) com um pedido para suspender a resolução aprovada pelo conselho e que cria a política afirmativa.

A UFPE tem 9.588 alunos de pós-graduação, sendo 4.625 do mestrado acadêmico, 673 do mestrado profissional e 4.259 do doutorado, além de 31 alunos no doutorado profissional. São 143 cursos de pós-graduação stricto sensu. Para ter direito à cota, as pessoas devem se autodeclarar participante de algum dos grupos contemplados na política afirmativa. Os estudantes com deficiência deverão também apresentar laudo emitido por um médico comprovando a deficiência.

CRITÉRIOS

Como acontece na cota para negros das graduações, os candidatos da pós-graduação, após o processo de seleção, passarão obrigatoriamente por uma comissão de heteroidentificação da UFPE. Igualmente essa comissão, como faz com os alunos da graduação, utilizará o critério fenotípico para a aferição da condição declarada pelo estudante.

Caso não haja candidatos aprovados para todas as vagas das cotas, considerando inclusive a lista de espera, essas poderão ser ocupadas por postulantes da ampla concorrência. 

ARGUMENTOS

No documento enviado ao MEC, o professor Francisco Queiroz diz que não é contrário "às ações afirmativas como dos afrodescendentes e pessoas oriundas de escolas públicas, deficientes ou quaisquer outras estabelecidas pela Constituição Federal".

Em seguida, ele afirma "O que é inaceitável é o aproveitamento de um fundamento nobre para criação de situações de privilégios sem base legal. É a prática que aqui se destaca da discriminação inversa", observa o diretor da Faculdade de Direito.

Francisco Queiroz continua dizendo que "não há qualquer base legal para cotas preferenciais de trans na pós-graduação" e destaca que a UFPE tem em seus quadros "professores, pesquisadores, doutores, mestres, doutorandos, mestrandos hétero, homossexuais, transexuais e adeptos de outras preferências sexuais. Nunca foram preteridos nem beneficiados por tal condição".

Ele diz ainda que a resolução "fere o princípio constitucional de igualdade, não significa cumprimento de política afirmativa, mas devio de finalidade , abuso flagrante de direito merecedor de imediato reparo, com preservação do regime de cotas preexistentes, que beneficia pessoas de cor negra e pardos e oriundos de escolas públicas.

MOBILIZAÇÃO

Estudantes e entidades favoráveis à nova política afirmativa criaram um abaixo-assinado virtual em defesa das cotas na pós-graduação e declarando a legitimidade da resolução da UFPE. Há mais de 50 instituições ou grupos como a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco, Cátedra de Direitos Humanos Dom Helder Câmara, GEPAR - Grupos de Estudo e Racismo em Autobiografia, Antirracismo e Racismo na Educação, Movimento Negro Unificado, Liga Brasileira de Lésbicas, Colégio Pernambucano de Ciências Forenses, além de grupos de várias universidades brasileiras e diretórios acadêmicos. Até a tarde desta terça-feira (1º), o documento online tinha mais de 600 assinaturas.

"Essa medida (a cota na pós-graduação), representa grande avanço institucional em contraponto à inércia e omissão de agentes estatais frente a ausência histórica desses corpos a estes espaço de construção de conhecimento e prática científica", diz um trecho do abaixo-assinado. E cita que a Universidade do Estado da Bahia (Uneb), a Universidade Federal do ABC e a Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) são instituições que já aplicam ações afirmativas a travestis e transexuais.

APOIO

Um grupo de 36 professores da Faculdade de Direito do Recife divulgou uma carta, na última segunda-feira (31), em que apoia a resolução do Cepe e afirma que "não há qualquer inconstitucionalidade ou ilegalidade na referida norma". Os docentes também ressaltam a autonomia da UFPE.

"A norma universitária, fruto de decisão colegiada de sua instância legalmente competente para tal, se coaduna com as melhores práticas de ação afirmativa no mundo, contemplando não somente ações dessa natureza em relação à questão racial e das pessoas com deficiência, mas alcançando também outros grupos de pessoas vulneráveis, historicamente excluídas de nossas instituições de ensino superior", enfatiza o conjunto de professores.

Em outro trecho, eles dizem que "as ações afirmativas não implicam em desobrigação com o mérito. Discentes da população negra, quilombola, cigana, indígena, transexual ou com deficiência precisam ser aprovados/as nos exames para ingressarem nas vagas correspondentes. A partir dessa aprovação é que se colocam as medidas de compensação da exclusão à qual essas populações foram historicamente relegadas".

Os professores chamaram a atenção ainda que em 193 anos, a Faculdade de Direito do Recife "teve apenas uma aluna transgênero que obteve graduação em direito, e isso foi na última década. Na pós-graduação stricto sensu não tivemos ninguém transgênero até o momento em seus corpos discente ou docente."

REPERCUSSÃO

"É um marco na política pública institucional de ensino em Pernambuco, pensando nessas populações mais vulneráveis e muito violentadas na sociedade brasileira. Ao contrário do que dizem da meritocracia, as pessoas travestis e trans partem de realidades muito diferentes. As cotas podem garantir que esses grupos continuem seus estudos na pós-graduação. Essa política afirmativa é de extrema necessidade e mostra que a UFPE está entendendo as demandas para diminuir o processo de exclusão que as alunas travestis e alunes trans sofrem no âmbito educacional", destaca a presidente da Nova Associação de Travestis e Transexuais de Pernambuco (Natrape), Samantha Vallentine Souza, 33 anos, aluna transexual do 6º período de ciências sociais da UFPE.

"Sou estudante de mestrado do Programa de Pós-graduação em Tecnologias Energéticas e Nucleares da UFPE. Me formei no bacharelado em ciências biológicas também pela UFPE, em 2019, e sigo constantemente até hoje batalhando pela minha permanência dentro da academia, visto que paralelo às minhas formações, também sou uma travesti negra. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans e travestis no mundo, onde temos a nossa expectativa de vida reduzida a 35 anos de idade. Muitas de nós somos são expulsas do núcleo familiar desde muito cedo, e quando na rua, estamos expostas às mais severas violências. Sem acesso ao mercado de trabalho e a educação primária, somos sujeitas a tudo pela sobrevivência", ressalta Dandara Luz, 25 anos.

"Entrar numa universidade pública me garantiu o direito de criar novas possibilidades para mim, porém ainda somos um grupo muito reduzido dentro da academia. Vejo minha entrada na pós graduação como uma possibilidade de outras travestis e pessoas trans também estarem lá comigo. Para isso, a institucionalização das cotas para pessoas trans e travestis na pós graduação pode ser uma das poucas (ou a única) oportunidades para uma mudança de rumo nas nossas vidas. E que isso se estenda também para os cursos de graduação da nossa UFPE. Precisamos de uma mudança de realidade. Não se trata de privilégios para nós. O acesso à educação não pode ser um privilégio. Ela é a única ferramenta que muda contextos de vida. Queremos e precisamos de mais acessos e novas visões de mundo e de vida", complementa Dandara.

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